quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

A LINGUAGEM

Introdução
1. A linguagem
Falantes de qualquer língua fazem reflexões sobre o uso e a forma da
linguagem que utilizam. Estes falantes são capazes de fazer observações quanto
ao “sotaque” e às “palavras diferentes” utilizadas por um outro falante. Qual o
falante que não se lembra de ter um dia discutido o “jeito diferente de falar” de
uma pessoa que seja de uma outra região geográfica? Pode-se também determinar
se o falante é estrangeiro e muitas vezes precisar o país de origem daquele falante.
Qualquer indivíduo pode “falar sobre” a linguagem e discutir aspectos relacionados
às propriedades das línguas que conhece. Isto faz parte do “conhecimento comum”
das pessoas. Contudo, há um ramo da ciência cujo objeto de estudo é a linguagem.
A lingüística é a ciência que investiga os fenômenos relacionados à linguagem
e que busca determinar os princípios e as características que regulam as estruturas
das línguas. Nas próximas páginas apresentamos ao leitor os principais termos
técnicos da lingüística que são adotados neste livro. Pretendemos também indicar
o objeto de estudo da lingüística e apontar áreas de trabalho que necessitam de
profissionais com conhecimentos lingüísticos, especialmente nas áreas de fonética
e fonologia.
Sabemos que falar uma determinada língua implica um conhecimento que
certamente transcende o escopo puramente lingüístico. Quando duas pessoas
falantes de uma mesma língua se encontram e passam a interagir lingüisticamente,
certamente se dá uma interação ampla em que cada uma das pessoas envolvidas
passa a criar uma imagem da outra pessoa. Podemos identificar se a pessoa é
falante nativo daquela língua. Um falante nativo é um indivíduo que aprendeu
aquela língua desde criança e a tem como língua materna ou primeira língua.
Caso classifiquemos o falante como sendo nativo, podemos afirmar se tal pessoa
partilha da mesma variante regional daquela língua. Não precisamos nem mesmo
ver um falante para determinar a sua idade ou sexo, e talvez seu grau de educação.
Isto pode ser facilmente atestado quando atendemos a um telefonema. Podemos
também precisar se o falante é um estrangeiro que tem a língua em questão
como segunda língua. Na grande maioria dos casos, falantes de uma segunda
língua têm características de sua língua materna transpostas para a língua
aprendida posteriormente. Tem-se portanto o “sotaque de estrangeiro” com
características particulares de línguas específicas (como “sotaque” de americano,
japonês, alemão, italiano, etc.).
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Para procedermos à análise de uma língua devemos delimitar a variante a ser
investigada. Idealmente devemos definir parâmetros lingüísticos e não-lingüísticos,
buscando constituir uma comunidade de fala homogênea. Uma comunidade de
fala consiste de um grupo de falantes que compartilham de um conjunto específico
de princípios subjacentes ao comportamento lingüístico. Após definir-se a
comunidade de fala a ser analisada passa-se, então, à coleta de dados que irão
formar o corpus. O corpus fornece o material lingüístico a ser analisado. Figueiredo
(1994) discute aspectos interessantes relacionados à coleta de dados e à seleção
de informantes.
Falantes de qualquer língua prestigiam ou marginalizam certas variantes
regionais (ou pelo menos não as discriminam), a partir da maneira pela qual as
seqüências sonoras são pronunciadas. Assim, determinamos variantes de prestígio
e variantes estigmatizadas. Algumas variantes podem ser consideradas neutras do
ponto de vista de prestígio. Temos em qualquer língua as chamadas variantes padrão
e variantes não-padrão. Os princípios que regulam as propriedades das variantes
padrão e não-padrão geralmente extrapolam critérios puramente lingüísticos. Na
maioria das vezes o que se determina como sendo uma variante padrão relaciona-se
à classe social de prestígio e a um grau relativamente alto de educação formal dos
falantes. Variantes não-padrão geralmente desviam-se destes parâmetros.
Vale dizer que as características das variantes padrão e não-padrão nem sempre
relacionam-se ao que é previsto pela gramática tradicional como correto. No
português de Belo Horizonte, por exemplo, a terminação “-ndo” das formas de
gerúndio é pronunciada como “-no”: “comeno, fazeno, quereno, dançano, vendeno,
etc”. Note que a redução de “-ndo” para “-no” ocorre somente nas formas de
gerúndio. A forma verbal “(eu) vendo” não permite a redução de “-ndo” para
“-no”, e uma sentença como “*Eu veno banana” não ocorre. Fazemos uso do
asterisco antes de um determinado exemplo – como no caso de “*Eu veno banana”
– com o objetivo de explicitar que tal exemplo é excluído ou não ocorre. Este
recurso é adotado ao longo deste livro.
Vale ressaltar que a redução de “-ndo” para “-no” nas formas de gerúndio em
Belo Horizonte (e em outras regiões do país) desvia-se do esperado como padrão.
Contudo, sendo o fenômeno amplamente difundido entre os falantes, temos que a
redução de gerúndio faz parte da variante padrão em Belo Horizonte.
Um exemplo de variante não-padrão pode ser ilustrado com as formas verbais
de primeira pessoa do plural. Em vários dialetos do português brasileiro tem-se
duas formas pronominais para a primeira pessoa do plural: “nós” e “a gente”.
Cada uma destas formas requer uma forma verbal distinta: “nós gostamos” e “a
gente gosta”. Ambas as formas são aceitas como parte da variante padrão em
vários dialetos. O que caracteriza a variante não-padrão é a troca de formas de
pessoa com a forma verbal: “nós gosta” e “a gente gostamos”.
Há ainda casos de lexicalização. Simplificando podemos dizer que o léxico
consiste de um conjunto de itens lexicais e de suas respectivas propriedades rele-
Introdução
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vantes para a organização da gramática. Falantes do português têm, por
exemplo, uma entrada lexical como “planeta”, cujas propriedades listadas podem
ser: substantivo, masculino. Cada palavra é associada a uma entrada lexical. No
caso da palavra “planeta” todos os falantes têm a mesma entrada lexical e as
mesmas propriedades específicas: substantivo, masculino. Há contudo exemplos
como “guaraná” ou “telefonema” que não apresentam a mesma entrada lexical
para todos os falantes. Para alguns falantes há a especificação de que estas palavras
são masculinas – “o guaraná, o telefonema” – e para outros falantes há a
especificação de que estas palavras são femininas – “a guaraná, a telefonema”.
Dizemos neste caso que para as palavras “guaraná, telefonema” o gênero é
especificado lexicalmente podendo ter duas alternativas possíveis: masculino ou
feminino. Não há uma opção melhor-pior ou certa-errada. Dizemos que a
lexicalização deste item para os falantes determina a forma a ser adotada. No caso
de “guaraná, telefonema” temos que a mesma entrada lexical tem propriedades
específicas diferentes.
Há um outro caso de lexicalização que envolve palavras que têm a entrada
lexical diferente e as mesmas propriedades específicas. Para alguns falantes as
formas “vassoura, assovio” são substantivos sendo “vassoura” feminino e “assovio”
masculino. Para outros falantes as formas “vassoura, assovio” não existem. As
formas correspondentes com o mesmo significado e as mesmas propriedades
específicas são: “bassoura, assobio”. Estas formas são substantivos sendo
“bassoura” feminino e “assobio” masculino. Pode ser que um falante tenha as
entradas lexicais “vassoura” e “assobio”. O falante faz uso da forma registrada
em seu léxico. Finalmente, há casos de uma palavra apresentar duas formas
lexicalizadas diferentes para o mesmo falante. Um exemplo é a palavra “ruim”
que para inúmeros falantes do português pode ser pronunciada como “ruím” ~
“rúim” (o símbolo ~ indica a alternância entre formas).
Podemos concluir que não há variante melhor ou pior de uma língua. Há
variantes de prestígio, estigmatizadas ou neutras. Para definir as propriedades
a serem adotadas em sua variedade pessoal um falante conta com várias fontes
de informação lingüística e não-lingüística de outros falantes. Mesmo que a
seleção não se dê conscientemente, definem-se opções e caracterizam-se assim
as particularidades da fala de um indivíduo: ou seja um idioleto. O que é interessante
é que embora todo e qualquer indivíduo tenha características específicas
em sua fala, há uma enorme porção compartilhada com os outros indivíduos
e definem-se assim os dialetos ou variantes de uma língua. Consideremos
a seguir algumas variantes não-lingüísticas que deixam marcas na organização
lingüística.
A fala do homem e da mulher por exemplo se faz marcar na organização
lingüística. Temos variantes de sexo (masculino ou feminino). No português
mineiro observamos que o uso do diminutivo é recorrente na fala feminina: “Olha
que gracinha aquele vestidinho amarelinho!” Parece difícil imaginar um homem
Introdução
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dizendo o mesmo enunciado. Geralmente, na fala masculina observa-se com menos
freqüência o uso do diminutivo. No caso do português, quando ocorre a variante
de sexo, esta é expressa em termos de freqüência de uso. Não há em português
marcas gramaticais, palavras específicas ou padrões de entoação que sejam somente
utilizados por falantes de um único sexo. Contudo, isto ocorre em algumas línguas.
O japonês pode ser tomado como exemplo. A língua japonesa apresenta as variantes
masculina, feminina e neutra. Um exemplo que marca a diferença gramatical entre
estas três variantes de sexo é o uso da partícula que segue um substantivo: na fala
masculina é “da”; na fala feminina é “yo” e na fala neutra é “desu yo”. Várias
outras marcas de sexo podem ser observadas em japonês.
Contamos também com variantes etárias. Note que pessoas mais idosas,
por exemplo, são mais propensas a pronunciar o r final das formas de infinitivo
dos verbos (cf. “cantar”), ou os s plurais de substantivos (“os meninos”). Jovens
tendem a omitir estes sons nestes contextos (cf. “cantá” e “os menino”).
Qualquer pessoa está ciente de variantes formais e variantes informais de
sua língua. Estas variantes são estilísticas. Claro que namorar ou brincar com os
filhos envolve o uso de uma variante diferente daquela utilizada em um encontro
formal em uma entrevista de emprego ou numa Corte de Justiça.
Fazer uso da linguagem certamente leva-nos a compartilhar de princípios
sociais e lingüísticos. Estes princípios são determinados sem nenhum encontro
específico dos falantes para tal finalidade ou de uma lei ou decreto criados
especificamente para este fim. Entretanto, tais princípios são compartilhados pela
comunidade em questão e são parte do universo dinâmico e passíveis de mudanças
a cada instante. Certamente, a intuição de falante nativo contribui para a seleção
da variante a ser usada em cada contexto. Em outras palavras sabemos o que falar,
para quem, como, quando e onde.
Portanto, ao empreendermos uma análise lingüística devemos considerar
parâmetros lingüísticos e não-lingüísticos. Dentre os fatores não-lingüísticos
ressaltamos: região geográfica, faixa etária, gênero (masculino, feminino, neutro),
estilo (formal, não-formal), grau de instrução, classe social.
Faremos uso do termo variante para caracterizar as propriedades
lingüísticas compartilhadas por um grupo específico de falantes. Temos, assim,
variantes etárias, variantes de sexo, variantes geográficas (como por exemplo a
variante de Belo Horizonte), etc. O termo dialeto é também utilizado como
sinônimo de variante. Ao referirmos à fala específica de um indivíduo adotamos
o termo idioleto. As propriedades particulares da fala de um indivíduo
caracterizam seu idioleto.
Gostaríamos de ressaltar que toda e qualquer variante de uma língua é
adequada lingüisticamente e é inapropriado dizer que há variantes piores ou
melhores. Sugerimos que o leitor faça o exercício abaixo com o objetivo de refletir
sobre a sua variedade lingüística pessoal.
Introdução
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Exercício 1
1.1. Procure um colega de turma (ou um amigo) que seja de uma região diferente
da sua e liste cinco palavras que vocês pronunciam de maneira diferente. Indique
as regiões consideradas. Identifique a letra (ou letras) correspondentes ao
som (ou sons) que marcam esta diferença.
1.2. Como você categoriza a sua variedade lingüística individual em termos
comparativos com outras variedades do português? Tente comparar a sua variante
com outras que você considera de prestígio, estigmatizadas e neutras.
Compare a sua seleção com a de um colega e discuta os fatores que levaram a
diferenças.
1.3. Aponte um aspecto do português que marque a variação lingüística entre
faixas etárias diferentes. Ilustre com exemplos.
Ao lingüista compete a tarefa de formular explicações sobre o mecanismo
subjacente à linguagem. Tal tarefa, em última instância, consiste da formalização
da gramática de uma determinada língua. Entendemos que uma gramática deve
explicitar os princípios e as características da língua analisada. Tal proposta deve
explicar todos os enunciados possíveis de ocorrer naquela língua e também excluir
enunciados que não sejam atestados. Note que excluímos neste livro referência à
gramática enquanto um volume que lista técnicas para a análise de sentenças em
termos de suas partes (como sujeito, predicado, etc.). O termo gramática é
tradicionalmente utilizado em referência às gramáticas prescritivas ou normativas.
A gramática prescritiva ou gramática normativa explicita as regras
determinadas para uma língua qualquer. Contudo, é basicamente impossível
encontrar um falante que faça uso de todas as regras gramaticais prescritas, sem
violações. Há méritos nas gramáticas normativas, sobretudo quanto ao
estabelecimento dos padrões que são compartilhados pelos falantes. Entretanto, a
consulta a uma gramática normativa deve ser feita criticamente, avaliando-se as
particularidades da linguagem utilizada pelos falantes. Um exemplo no português
brasileiro é o uso do futuro simples: “Eu buscarei o livro amanhã”. Para uma
grande maioria de falantes do português brasileiro o futuro simples não ocorre na
língua falada. Em seu lugar ocorre o futuro composto: “Eu vou buscar o livro
amanhã”. Note, contudo, que o futuro simples é utilizado na linguagem escrita e
em algumas variantes do português brasileiro (e certamente no português europeu).
Faz-se, portanto, pertinente registrar a norma que prescreve o uso do futuro simples.
De posse desta informação falantes podem fazer uso apropriado do futuro simples
se lhes for necessário.
Temos também a gramática descritiva que tem por objetivo descrever as
observações lingüísticas atestadas entre os falantes de uma determinada língua.
Sem prescrever normas ou definir padrões em termos de julgamento de corretoincorreto,
busca-se documentar uma língua tal como ela se manifesta no momento
Introdução
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da descrição. Podemos dizer que no caso do futuro simples uma gramática descritiva
deve documentar a sua ausência no português falado de vários dialetos e registrar
suas características nas variantes em que ele ocorre. Tais gramáticas são formuladas
com o apoio teórico da lingüística. (ver Perini (1995)).
Exercício 2
Discuta com um exemplo do português a diferença entre a gramática prescritiva
(ou normativa) e a gramática descritiva.
Uma descrição lingüística pode ter um caráter diacrônico ou sincrônico. A
lingüística diacrônica, que é também chamada lingüística histórica, analisa a
linguagem e suas mutações durante um determinado período. Neste caso explicita-se
o período a ser considerado e o material lingüístico a ser adotado na análise. Para
análises diacrônicas do sistema sonoro do português ver Williams (1975), Mattos
e Silva (1991) e Tessyer (1997). A lingüística sincrônica investiga as propriedades
lingüísticas de uma determinada língua em seu estágio evolutivo atual. Deve-se
explicitar a comunidade de fala observada e as condições da coleta do corpus a ser
adotado na análise.
No início desta introdução definimos a lingüística como sendo a ciência que
investiga os fenômenos relacionados à linguagem e que busca determinar os
princípios e as características que regulam as estruturas das línguas. Aceitando-se
que a lingüística investiga a linguagem humana, tentemos, então, delimitar mais
especificamente o seu objeto de estudo. Discutimos brevemente a seguir as
propostas de Sausurre e Chomsky.
A proposta de Sausurre (1916) é de cunho estruturalista e tem como mérito
explicitar o objeto de estudo da lingüística de maneira clara e objetiva. A leitura
deste trabalho – denominado “Curso de Lingüística Geral” – é essencial para os
iniciantes em lingüística. Sausurre propõe a dicotomia entre língua e fala. A língua
constitui um sistema lingüístico compartilhado por todos os falantes da língua em
questão. A fala expressa as idiossincrasias particulares da língua utilizada por
cada falante. O lingüista busca seu material para análise na fala. Coleta-se um
corpus e busca-se definir e descrever um sistema lingüístico – ou seja, a língua – a
partir da análise das particularidades individuais e das semelhanças compartilhadas
pelos indivíduos. Portanto, o sistema a ser definido e descrito pelo lingüista constitui
a língua. A dicotomia entre língua-fala estabelece o objeto de estudo da lingüística:
a língua. Tal objeto é investigado a partir de material proveniente da fala.
Chomsky (1965 e publicações subseqüentes) inova a ciência da linguagem por
associar o evento lingüístico à mente em termos psicológicos ao propor a Gramática
Gerativa. A Gramática Gerativa – ou Gramática Transformacional – contribuiu
para a mudança de foco teórico e metodológico da lingüística do século XX. Perini
Introdução
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(1976) discute a proposta inicial de Chomsky a partir de exemplos do português. A
proposta teórica gerativa assume que à lingüística interessa o estudo da competência.
A competência consiste do conhecimento subjacente e internalizado que o falante
tem de sua língua (semelhante a língua para Sausurre). O uso que o falante faz de
sua língua é denominado desempenho. O desempenho relaciona-se ao que Sausurre
denominou fala. A grande diferença teórica entre língua-competência e faladesempenho
pauta-se no argumento de Chomsky de que o conhecimento lingüístico
do falante (em termos de competência) transcende qualquer corpus. Os falantes têm
um conhecimento ilimitado de sua língua ao criarem e reconhecerem enunciados
completamente novos e ao serem capazes de identificar erros de desempenho. A
intuição do falante nativo de uma língua é a referência para definir-se os parâmetros
gramaticais (em termos de estruturas aceitáveis naquela língua). A análise lingüística,
segundo Chomsky, deve descrever as regras que governam a estrutura da competência.
Chomsky argumenta que a lingüística pode contribuir para a compreensão da natureza
da organização da mente humana [(cf. por exemplo Chomsky (1986,1992)].
Um outro aspecto importante da proposta teórica de Chomsky é a postulação
de diferentes níveis da gramática e a inter-relação entre eles. O esquema abaixo
expressa tal proposta.
Gramática
/ \
Fonologia Sintaxe Semântica
Os níveis básicos de representação assumidos são fonologia, sintaxe e
semântica. A fonologia estabelece os princípios que regulam a estrutura sonora
das línguas, caracterizando as seqüências de sons permitidas e excluídas na língua
em questão. A sintaxe analisa o mecanismo subjacente à estrutura gramatical,
definindo a organização dos constituintes internos das sentenças e estabelecendo
a relação entre tais constituintes. A semântica estuda a relação entre conteúdo e
significado. Sugiro que o leitor escolha e consulte um livro de introdução à
lingüística e faça o exercício abaixo.
Exercício 3
3.1. Qual é o objeto de estudo da lingüística? Justifique a sua resposta.
3.2. Explique os objetivos dos seguintes níveis da gramática: fonologia, sintaxe
e Semântica. Indique um tópico abordado na análise do português para cada um
destes níveis. Dê exemplos.
A análise lingüística requer que se observe, descreva e, idealmente, explique
os fenômenos atestados. A observação de um fenômeno pode ser feita de vários
Introdução
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ângulos, fornecendo-se assim diversas formas de interpretação. Geralmente a maneira
de observação assumida é decorrente dos pressupostos teóricos e metodológicos
adotados na descrição. A descrição de qualquer fenômeno deve ser pautada em uma
teoria que regule os princípios de tal descrição. A explicação dos fenômenos
observados e descritos se dá a partir da fundamentação teórica adotada. É essencial
que qualquer análise adote um modelo teórico e que tal proposta seja adotada
integralmente (embora com criticidade!). Teorias diferentes possuem premissas
diferentes e a combinação de teorias deve ser feita cuidadosamente. Sem o devido
cuidado, a mescla de modelos teóricos pode incorrer na criação de uma teoria nova
sem pressupostos teóricos e metodológicos que sejam coerentes. Ao analisar qualquer
material, o cientista depara-se com fatos que porventura podem não ter sido
considerados anteriormente e pode ter, então, que complementar um modelo teórico.
Contribui-se, assim, para com o progresso da ciência. Pode-se também sugerir que
um determinado aspecto de um modelo teórico deva ser alterado a partir de evidências
da análise. Teorias devem ser vistas como recursos a serem utilizados e alterados se
for necessário.
Além de não haver língua melhor ou pior, não há línguas primitivas ou mais
evoluídas. Toda língua permite a expressão de qualquer conceito. Caso seja
necessário incorpora-se vocabulário novo ampliando-se o léxico da língua em
questão. Isto faz parte do caráter evolutivo das línguas. Todas as línguas mudam
continuamente.
Precisar exatamente as fronteiras geográficas de uma determinada língua
pode muitas vezes ser difícil. Ao viajarmos de Portugal à Espanha passando pela
Galícia não perceberemos nenhuma mudança abrupta do ponto de vista lingüístico.
Contudo, se sairmos de Portugal e viajarmos diretamente à Espanha identificaremos
as características do português falado em Portugal como bastante distintas do espanhol
falado na Espanha. O mesmo fenômeno pode ser observado em regiões de
fronteira do Brasil com outros países da América do Sul. O português e o espanhol
da fronteira tem várias características comuns. Portanto, definir uma língua ou
um dialeto transcende o caráter puramente lingüístico. Muitas vezes fatores
políticos e sociais têm forte influência nas delimitações geográficas das línguas.
Línguas que se desenvolvem sem interferência formal externa são chamadas
línguas naturais. O português é uma língua natural por evoluir de acordo com
parâmetros gerados pela própria língua a partir do uso feito pelos falantes. Há
também línguas artificiais (também chamadas línguas auxiliares). Uma língua
artificial é uma língua inventada com o propósito específico de comunicação ou
para fins de linguagem computacional. O esperanto é geralmente a língua artificial
mais difundida (criada em 1887 pelo polonês Ludwig Lazarus Zamenhof). O léxico
de tal língua foi construído com influência de línguas da Europa ocidental e há
influência de línguas eslavas na sintaxe e na ortografia.
O português é classificado como pertencendo a família de línguas românicas
do tronco indo-europeu. Estima-se que há aproximadamente 160 milhões de
Introdução
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falantes [(cf. Crystal (1995)]. O português é língua oficial e majoritária no Brasil,
em Portugal e nas ilhas atlânticas da Madeira, dos Açores e de São Miguel. Alguns
países da África, cuja colonização foi feita por Portugal, têm o português como
língua oficial embora, em conjunto, as línguas nativas sejam majoritárias. Dentre
estes destacamos Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e
Príncipe. Na Ásia o português é falado em Macau, Damão, Diu Goa e na Oceânia
o português é falado em Timor Leste.
Há ainda as chamadas línguas crioulas que são derivadas do português. Tais
línguas surgiram como línguas francas com o propósito de permitir o comércio
entre falantes do português e de outras línguas. Criou-se então uma língua distinta
baseada no português e na(s) língua(s) nativa(s). Em seu estágio inicial tal língua é
denominada pidgin. Ao ter falantes nativos e adquirir um status dinâmico de língua
natural, tal língua passa a ser denominada crioulo [cf. Holm (1988) e Couto (1995)].
Há crioulos baseados em outras línguas além do português (como, por exemplo,
francês, inglês, etc). Dentre os crioulos derivados do português que se encontram
na África temos o da ilha de Cabo Verde, os das ilhas do golfo da Guiné (São
Tomé, Príncipe e Ano Bom), o da Guiné-Bissau e o de Casamance (no Senegal).
Na Ásia temos os crioulos de Malaca (na Malásia), de Macau (em Hong Kong), do
Srilanca (em Vaipim e Baticaloa) e na Índia temos crioulos em Chaul, Korlai,
Tellicherry, Cananor e Cochim. Na Oceânia há o crioulo de Tugu (perto de Jacarta).
Exercício 4
Consulte um atlas e identifique as áreas em que se falam o português e os crioulos
baseados na língua portuguesa.
Neste livro tratamos da organização do sistema sonoro com ênfase na
descrição do português brasileiro. Referência a outras variedades do português e a
outras línguas se dá quando não podemos exemplificar um determinado fenômeno
ou um certo aspecto teórico com exemplos do português brasileiro.
Tratamos do sistema sonoro do português do ponto de vista prático e teórico.
O objetivo básico deste livro é fornecer ao leitor o instrumental necessário para a
caracterização de sua fala. Pretende-se também fomentar o interesse pelos estudos
fonológicos. Este livro se divide em três partes: Fonética, Fonêmica e Modelos
Fonológicos. A primeira parte, intitulada Fonética, é dedicada ao estudo da fonética
articulatória aplicada ao português. Tratamos dos parâmetros envolvidos na
articulação dos segmentos vocálicos e consonantais e da organização de tais
segmentos na estrutura silábica. Espera-se que ao fazer os exercícios que
acompanham o texto o leitor identifique as características articulatórias específicas
dos segmentos consonantais e vocálicos que ocorrem em seu idioleto, descrevendo
assim, a sua variedade lingüística individual. Como conclusão temos que as
Introdução
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respostas a vários exercícios da parte de Fonética podem diferir de uma pessoa
para outra. A segunda parte, intitulada Fonêmica, apresenta os princípios teóricos
e metodológicos da análise fonêmica. O leitor deve fazer os exercícios e postular
um sistema fonêmico para o português. Tal sistema é idêntico para todos os falantes
do português (sendo correlato ao sistema da língua proposto por Sausurre). As
particularidades da fala de cada indivíduo são expressas na análise de cada idioleto.
Finalmente, a terceira parte que é intitulada Modelos Fonológicos, apresenta uma
visão da trajetória pós-estruturalista da análise do componente sonoro: a fonologia.
Apontamos os princípios gerais de cada modelo e indicamos referências
bibliográficas primárias. Quando possível fornecemos bibliografia em português
e referências de análises que demonstrem a aplicabilidade de um determinado
modelo a dados da língua portuguesa. Sugerimos ainda uma série de tópicos teóricos
e aplicados que podem potencialmente gerar trabalhos de monografia, dissertaçtes
de mestrado ou teses de doutorado.
Pretendemos, portanto, introduzir o leitor ao estudo do componente sonoro
da linguagem com ênfase no português brasileiro. Não se espera qualquer
conhecimento prévio e assume-se que ao concluir a leitura e exercícios propostos
o leitor deve ser capaz de avaliar as características de sua fala e de outros falantes.
Espera-se também que o leitor possa discutir os pressupostos teóricos da análise
fonêmica e avaliar criticamente aspectos controvertidos do sistema sonoro do
português. Com a discussão apresentada na parte final deste livro espera-se
contribuir para que o leitor amplie seus conhecimentos teóricos dos vários modelos
fonológicos.
Para finalizar, apontamos áreas de trabalho que requerem profissionais com
formação em lingüística e mais especificamente nas áreas de fonética e fonologia.
2. Áreas de trabalho
Lingüística: O teórico da linguagem busca explicar os mecanismos subjacentes aos
sistemas lingüísticos. A compreensão dos sistemas sonoros das línguas, bem como a
relação destes sistemas com os demais componentes da gramática (como morfologia,
sintaxe, semântica) consistem no trabalho do pesquisador. Teóricos da linguagem
podem investigar um determinado aspecto da linguagem do ponto de vista sincrônico
ou podem empreender uma pesquisa de um aspecto diacrônico da língua escolhida.
Formação: Graduação em Letras e Lingüística e pós-graduação em áreas afins.
Ensino de língua materna: Ao conhecer em detalhes a estrutura sonora da língua
portuguesa, o profissional pode avaliar problemas enfrentados por estudantes e formular
propostas para solucioná-los. Tal conhecimento é sobretudo valioso aos alfabetizadores
e professores de português. Formação: Curso Normal (segundo grau) e Graduação
em Letras – português.
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Ensino de língua estrangeira: O professor de língua estrangeira deve conhecer bem
a língua que ensina e ser capaz de compará-la ao português. A comparação permite
avaliar problemas de interferência lingüística de uma língua na outra e formular
propostas para bloquear tal interferência. Formação: Graduação em Letras – português
e outra língua.
Planejamento lingüístico-social: A variedade lingüística em um país com a dimensão
territorial do Brasil impõe desafios. Em áreas com grande migração nacional deparase
com as diferenças lingüísticas entre o educador e os educandos. Muitas vezes
alunos com excelente potencial são excluídos do sistema educacional devido ao fato
de sua fala desviar da norma prescrita. A exclusão ocorre às vezes na mesma região
geográfica sendo que educador e educando compartilham de variedades lingüísticas
diferentes e problemas até mesmo de inteligibilidade podem surgir. Cabe ao planejador
educacional avaliar situações de conflito e propor alternativas para os problemas
existentes. Formação: Graduação em Letras, Pedagogia, Sociologia e Assistência
Social. Pós-graduação em áreas afins com pesquisa específica em planejamento.
Tradução e interpretação: A tradução e interpretação tornam-se áreas de trabalho
muito relevantes no mundo globalizante em que vivemos. Tradutores necessitam
conhecer os sistemas sonoros das línguas com que trabalham para explicar aspectos
que muitas vezes são opacos em textos escritos (a tradução de poesias e canções é
um caso explícito). Para o intérprete, o conhecimento dos sistemas sonoros das línguas
com que trabalha é fundamental para que o mínimo de incompreensão incorra durante
uma sessão de trabalho. Formação: Graduação em Letras, Tradução e pós-graduação
em áreas afins.
Dramaturgia: A expressão oral tem um papel fundamental na dramaturgia. Pense
por exemplo que um ator/atriz às vezes desempenha um papel cujo personagem tem
um sotaque diferente do seu. Colaboração profissional entre atores e profissionais
que trabalham com a linguagem se faz necessária. O lingüista pode também ensinar
aos atores o melhor meio de utilizar os mecanismos que permitam o uso pleno das
partes do corpo envolvidas na linguagem. Formação: Graduação em Letras, Teatro
e Escolas de Dramaturgia.
Fonoaudiologia: O profissional que trabalha com aspectos relacionados à patologia
da fala é o fonoaudiólogo. Este profissional deve conhecer bem os aspectos
articulatórios e acústicos envolvidos na produção da fala e também ser capaz de
avaliar a organização fonológica do sistema da língua em questão. Aspectos como a
gagueira ou a “troca de sons” na fala são tratados por fonoaudiólogos ou terapeutas
da fala. Formação: Graduação em Fonoaudiologia e pós-graduação em áreas afins
(como Lingüística, por exemplo).
Linguagem de surdo-mudo: Os sistemas de comunicação de pessoas que não escutam
ou que não falam têm uma complexidade gramatical específica e em princípio estão
sujeitos a mudanças lingüísticas semelhantes às que ocorrem nas línguas naturais. Há
vários sistemas de sinais utilizados por mudos. Alguns surdos podem utilizar a
linguagem oral se adequadamente orientados por profissionais. Formação:
Introdução
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Graduação em Letras e áreas afins. Também o desenvolvimento de pesquisas em
cursos de pós-graduação em áreas afins (como a Lingüística, por exemplo).
Lingüística computacional: Um dos grandes desafios da ciência computacional é
encontrar correlatos acústicos da fala que sejam conversíveis em sinais digitais. Muito
tem sido desenvolvido nesta área nos últimos anos. Um exemplo da relação lingüísticacomputação
é a possibilidade de se obter e passar informações por telefone entre um
ser humano e um computador (via telefonia, por exemplo). Ao definir-se os aspectos
acústicos e articulatórios da língua e seu sistema fonológico, pode-se aperfeiçoar
mecanismos já existentes. Desafios são impostos sobretudo na área da sintaxe e
semântica. Formação: Graduação em Computação, Física e Lingüística e pósgraduação
em áreas afins.
Ciência da telecomunicação: A transmissão da fala em termos físicos impõe desafios
para a ciência. O som deve ser transmitido nitidamente para que não se perca conteúdo
de informação. A transmissão dos meios de comunicação – como rádio e televisão –
depende de pesquisa nesta área. Obter-se um meio eficaz, rápido e econômico de
transmitir a fala são ambições desta área de pesquisa. Formação: Graduação em
Computação, Física e Lingüística e pós-graduação em áreas afins.
Zoo-Biologia: Definir os parâmetros envolvidos na comunicação animal e caracterizar
a organização dos sistemas lingüísticos animais são tópicos de pesquisa na área de
zoo-biologia. Linguagens de chimpanzés, golfinhos, baleias e abelhas são relativamente
bem estudadas. Faz-se relevante caracterizar as relações de comunicação entre
diversos membros de uma mesma espécie em diferentes regiões do planeta. Formação:
Graduação em Lingüística, Biologia, Zootecnia e pós-graduação em áreas afins.
Lingüística forense: A fala de um indivíduo apresenta características específicas e
únicas. Estudos têm sido realizados para caracterizar as particularidades da fala
individual e definir os parâmetros do que corresponde à “impressão digital” da fala.
Espera-se que o progresso nesta área de pesquisa permita a utilização de evidências
da fala em tribunais. Formação: Graduação em Lingüística com complementação
das áreas de Física e Direito. Pós-graduação em áreas afins.
Lingüística indígena: Temos hoje aproximadamente 120 línguas indígenas faladas
em todo o território brasileiro. Destas, apenas umas poucas foram amplamente
estudadas. Do ponto de vista teórico o estudo destas línguas permite a ampliação do
conhecimento dos mecanismos que regulam as línguas naturais. Do ponto de vista
prático registra-se tecnicamente a língua nativa que pode ser eventualmente utilizada
em projetos educacionais se for de interesse da comunidade. Formação: Graduação
em Lingüística, Letras, Antropologia e pós-graduação em áreas afins.
Introdução

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