quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

CONSONÂNCIA ENTRE TEORIA E PRÁTICA

CONSONÂNCIA ENTRE TEORIA E PRÁTICA
Norma Seltzer Goldstein (USP)
BAGNO, Marcos. Dramática da Língua Portuguesa. Tradição gramatical, mídia e exclusão social. S Paulo, Ed Loyola 2000 ( 327 p)
BAGNO, Marcos. Português ou Brasileiro? um convite à pesquisa. São Paulo, Parábola Editorial, 2001 ( 182 p)
Fala-se muito na necessidade de estabecer elos entre a universidade e o ensino fundamental e médio. Na prática, nem sempre isso ocorre, permanecendo a academia distanciada dos níveis de ensino de que ela, de certa forma, se retroalimenta. Uma boa escola para jovens certamente teria reflexos nas atividades acadêmicas, tanto de ensino quanto de pesquisa. Contudo, salvo (louváveis) projetos isolados, pouco se vem fazendo nessa direção. Geralmente, os autores de dissertações e teses de mestrado buscam divulgar seus ensaios, enquanto pesquisa acadêmica, sem ampliar a discussão no sentido de propor uma questão crucial: de que modo este trabalho poderia contribuir para o ensino fundamental e médio? De maneira ainda esparsa, estão surgindo alguns pesquisadores conscientes disso, cuja inquietação encontra eco em editoras pequenas, voltadas para nichos específicos de mercado, como o de alguns docentes do ensino fundamental e médio, interessados em atualizar-se e aprimorar a própria formação. Nos últimos dois anos, vêm surgindo algumas tiragens de obras destinadas a professores de LP 1 - Português língua materna- resultantes de pesquisas universitárias. É o caso de Marcos Bagno, doutor em Filologia e Língua Porguesa pela Universidade de São Paulo, cuja extensa pesquisa lingüística torna-se fonte de reflexão e sugestões metodológicas práticas para docentes de LP1.Dado o parentesco entre as duas obras, comento conjuntamente Dramática da língua portuguesa. Tradição gramatical, mídia e exclusão social - resultante da tese de doutorado- e Português ou brasileiro? um convite à pesquisa- conjunto de roteiros de pesquisa a serem desenvolvidos com e por alunos, em contexto escolar- indicados, daqui em diante, por DLP e PB, respectivamente.
No livro resultante da tese, o jogo de palavras do título fornece a primeira pista: uma simples troca de fonemas marca a relação entre o problema lingüístico e o social: dramática / gramática. A mesma ponte reaparece na segunda parte do título, ao correlacionar apego à tradição gramatical e exclusão social. Delineia-se, assim, o eixo condutor da obra que se caracteriza por uma pesquisa lingüística séria, uma reflexão política lúcida e uma linguagem clara e fluente.Em "Primeiras palavras", o autor apresenta DLP como "resultado de uma longa reflexão sobre as concepções de língua e de linguagem na sociedade brasileira", lamentando "a existência e o vigor de um preconceito lingüísitco profundamente arraigado na cultura deste país". O ensaio percorre trilhas sociolingüísticas, movido pela utopia de possibilitar, a cada cidadão brasileiro, a aceitação de seu próprio falar. O leitor, seduzido pelo convite, também passa a sonhar com o dia em que estaremos todos repetindo, com orgulho, o verso da canção "minha pátria é minha língua".Os cinco capítulos do livro tratam de gramática tradicional, da relação entre preconceito e ideologia, da questão da norma culta padrão, provocando o leitor a pensar sobre o papel do lingüista diante dessas questões. Uma parte da argumentação se apóia na análise de exemplos extraídos de um site da internet.Bagno transcreve passagens desse site que exemplificariam a distinção entre língua coloquial e língua formal. Com fundamentação e engenho, Bagno aponta o equívoco embutido na comparação. Ela pretenderia evidenciar a especificidade de cada variedade lingüística, em função da situação específica de comunicação, mas acaba por apresentar uma classificação preconceituosa, já que explicita o valor "positivo" de uma variedade - lingua "escrita, formal, padrão" (sic) - em contraposição ao valor "negativo" da outra - "língua falada, coloquial" (sic). Se, por um lado, o autor do site ilustra o emprego da linguagem "informal", aparentando valorizar esse registro, por outro deixa transparecer seu valor "menor", em relação ao padrão culto de linguagem. Bagno aponta outra falha séria do site, decorrente da inconsistência terminológica, ao misturar, indistintamente, as duas modalidades da língua - a falada e a escrita - e as diversas variedades lingüísticas. Nem sempre a língua falada é "informal", ela também pode ser "culta", mas o site funde as duas categorias, chegando a polarizar, de um lado, o "informal / o falado" e, de outro, o "formal / escrito". Ou seja: onde ficam o formal/falado? E o informal/escrito? Trata-se de problema sério, em página disponível a todos os usuários da internet, induzindo os que o consultam a erros conceituais e terminológicos, além de realimentar o preconceito lingüístico.Bagno propõe uma saída para o ensino: "Sou da opinião de que a disciplina Língua Portuguesa deve conter uma boa qualidade de atividades de pesquisa, que posibilitem ao aluno a produção de seu próprio conhecimento lingüísitco, como arma eficaz contra a reprodução irrefletida e acrítica da doutrina gramatical normativa. Para cada assunto a ser abordado (colocação de pronomes, estratégias de relativização, refência verbal, concordância nominal etc) seria o caso de levantar um corpus o mais diversificado possível para que nele se buscasse apreender as regras das diferentes variedades de língua, a distribuição dos usos de acordo com a modalidade de língua, com o registro, com o gênero de texto etc." ( o. c. p 159).O autor exemplifica esse tipo de proposta, analisando, inicialmente, três textos retirados de jornal, nos quais discute a questão do gênero jornalístico; ou, melhor dizendo, dos "gêneros jornalísticos", no plural. A partir das propostas de Castilho sobre as concepções de linguagem e a de Bortoni-Ricardo para a análise do português do Brasil, a argumentação prossegue, centrada na investigação de cinco fenômenos sintáticos, observados numa série de corpora: 1) estratégias de relativização; 2) retomada anafórica de objeto direto de 3ª pessoa; 3) pronomes sujeito-objeto; 4) pseudopassivas "sintéticas" ou "pronominais"; 5) regências dos verbos em IR e CHEGAR com idéia de movimento. O resultado é um mapeamento de usos, em diferentes variedades, na modalidade falada e na escrita, evidenciando as diversas "línguas" que todos nós utilizamos.O ponto de chegada, prenunciado desde o início, é a constatação da "urgente necessidade de romper com a falsa sinonímia ensino de língua = ensino de gramática, sobretudo quando nessa relação, como já foi demonstrado, gramática nada tem a ver com intuição lingüística do indivíduo enquanto falante nativo de uma língua, nem com a fascinante investigação filosófica das relações do ser humano com sua linguagem e dos seres humanos entre si por meio da linguagem" ( grifos do autor- o.c. p 306). Da "gramática" à "dramática", Bagno descortina os três atos do drama da linguagem: "1º ato: ter o que dizer; 2º ato: querer dizer; 3º ato: poder dizer". Este último, o mais complexo, encenaria toda uma série de exclusões sociais.Citações de Foucault embasam e afunilam a discussão em direção a uma proposta concreta: "Nossa prática deve subordinar a língua à linguagem, a gramática à dramática, fazer da gramática o instrumento para tocar a música da linguagem - justamente o oposto do que se tem feito tradicionalmente até hoje (o.c. p. 311).É provável que o leitor se pergunte: e agora? Como prosseguir meu trabalho como professor de LP1? Embora a obra deixe claro que a resposta a essa questão só vá ser respondida, gradativamente, por cada docente, ao lado de seus discípulos em sala de aula, o segundo livro retoma a discussão, voltando-se agora, diretamente, para a atividade pedagógica. Marcos Bagno, em Português ou Brasileiro? relaciona a teoria à aplicação prática, propondo roteiros de pesquisa destinados à utilização em sala de aula. De modo coerente, o autor aplica sua própria sugestão, "fazendo da gramática um instrumento para tocar a música da linguagem". A epígrafe da obra é uma canção, Plataforma, de João Bosco e Aldir Blanc; os nomes dos capítulos retomam igualmente alusões musicais: 1. Não põe corda no meu bloco; 2. Primeiro o fubá, depois o dendê; 3. Cores que eu não sei o nome; 4. Eu consolo ele, ele me consola; 5. Deixa eu dizer que te amo; 6. Em que se vai trocando as pernas; 7. Quando chegar em Americana, eu não sei o que vai ser; 8; Que sacuda e arrebente o cordão de isolamento".O capítulo inicial trata de uma série de tópicos prévios: gramática tradicional; ciência lingüística; língua falada; conceito de "erro"; norma e variação lingüística, para, a partir delas, propor as questões que preocupam todos os professores de língua materna: "Afinal, o que ensinar na escola? Gramática: sim ou não?" Passo a palavra ao autor: "Toda ciência digna deste nome é um saber em construção, uma obra nunca terminada, um trabalho constante e ininterrupto. Ao contrário da Gramática Tradicional, que acabou se constituindo numa coleção de dogmas, isto é, uma coleção de conceitos que são considerados verdades absolutas e indiscutíveis, a Lingüística, como toda ciência, não pára de questionar suas próprias idéias, não pára de reformular suas teorias. /.../Assim, diante desse impasse -não ensinar a Gramática Tradicional ( porque não científica) nem ensinar as teorias mais recentes ( porque sempre inconclusas e provisórias)- o que nos resta a fazer em sala de aula? O que nos resta a fazer não é nenhum resto, mas simplesmente tudo e só o que temos a fazer: desenvolver a prática da leitura e da escrita, da releitura e da reescrita /.../" ( grifos do A, o.c. p 66)Mas e a gramática tradicional? Ela pode ser ensinada? A resposta é "sim", caso o professor considere isso importante. E vem complementada por uma série de sugestões para instrumentalizar como isso deveria ser feito, levando em conta a variação lingüística e considerando a linguagem como um atividade social, condições para que o aluno assuma uma postura crítica face ao objeto de estudo. A idéia é que alunos e mestres pesquisem juntos a ocorrência de determinados fenômenos num corpus em que figurem textos de língua oral e de língua escrita. A tarefa não é fácil. Além de uma mudança de mentalidade por parte do mestre, ela exige, ainda, tempo e dedicação: "Não basta pedir aos alunos que façam a pesquisa: é fundamental que você também faça tudo o que eles vão fazer. Assim, você ficará sabendo o que eles podem encontrar, identificará os pontos em que pode haver mais dificuldade, reconhecerá a viabilidade ou inviabilidade do projeto. Desse modo, será mais fácil para você. Afinal, para guiar, para orientar alguém, é preciso que este guia conheça bem o caminho." ( grifos do autor o c.p. 75)Em seguida, Bagno propõe alguns roteiros de pesquisa, enfatizando que "a riqueza da pesquisa está na própria pesquisa, no processo de investigação, na exploração do material, na aplicação das teorias, no levantamento das hipóteses. E complementa, declarando-se aberto à continuação do diálogo: "Se, ao longo do trabalho, você sentir falta de alguma coisa que eu tenha deixado escapar, por favor, não deixe de me comunicar! ( idem ibidem).Desde o início, esta resenha enfatizou a importância da aplicação das pesquisas lingüísticas à prática da sala de aula. Existe, no entanto, o risco de que esse processo resulte em propostas "novidadeiras" e "salvadoras", que deixam completamente de lado nossa tradição gramatical. Não é, em absoluto, o caso das obras em análise. Além da ponte entre teoria e prática, Marcos Bagno faz, também a ponte entre tradição e inovação, apoiado em ampla fundamentação bibliográfica. Esse não é seu único mérito. O mais importante talvez seja a postura de pesquisador em eterno processo de aprendizagem, disposto a interagir com seus leitores, para rever e reformular permanentente suas posições. Seria quase desnecessário acrescentar que as propostas do autor, voltadas para a formação de jovens com espírito crítico, estão perfeitamente afinadas com os Parâmetros Curriculares Nacionais e, para nos limitarmos a um Estado, também com as Propostas Curriculares de Língua Portuguesa da Secretaria de Educação do Estado de Sâo Paulo.

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