terça-feira, 4 de março de 2008

DESPEDIDA DO PROFESSOR CELITO


Queremos deixar aqui documentado o nosso agradecimento especial ao Professor Celito João Fochi, e dizer que ele estará presente em nossa caminhada, pois foi nosso promissor e nos fez acreditar que vamos conseguir - então PROFESSOR OBRIGADO POR TER ESTADO AO NOSSO LADO, JÁ ESTAMOS COM SAUDADES!

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

O PAPEL DO PROFESSOR NA FORMAÇÃO DE BONS LEITORES

O papel do professor na formação de bons leitores
Vicente Martins

O principal desafio dos governos, estabelecimentos de ensino e docentes, no meio escolar, é o de levar o aluno ao aprendizado da leitura, escrita e cálculo.
O que deveria ser básico no processo ensino-aprendizagem se tornou um desafio aparentemente complexo para os educadores do século XXI: assegurar ao educando a aprendizagem escolar.
Por que o domínio básico de lectoescrita se tornou tão desafiador para o sistema de ensino escolar? Por que ensinar a ler não é tão simples? Como desvelar o enigma do acesso ao código escrito?
Em geral, quando nos deparamos com as dificuldades de leitura ou de acesso ao código escrito, esperamos dos especialistas métodos compensatórios para sanar a dificuldade. O fracasso do ensino escolar, no entanto, não é obra exclusiva da metodologia. Muitos são os fatores que favorecem o fracasso escolar.
Nenhuma dificuldade se vence com método mirabolante. O melhor caminho, no caso da leitura, é o entendimento lingüístico, por parte dos docentes e discentes, do fenômeno lingüístico que subjaz ao ato de ler. Ler é uma habilidade lingüística e traz, por isso, todas as vicissitudes da linguagem verbal.
Ler é, ao primeiro momento, um ato de soletrar, de decodificar fonemas representados nas letras; reconhecer as palavras, atribuir-lhes significados ou sentidos; enfim, ler, realmente, não é tão simples como julgam alguns leigos. Ler é uma habilidade das mais complexas no âmbito da linguagem Qual, então, o papel do professor na formação de bons leitores? Que passos devem levar a efeito no exercício da leitura.
O primeiro passo, nessa direção, é de o professor ensinar o aluno a aprender a ler antes para, em seguida, praticar estratégias de leitura. Em outras palavras, o docente deve atuar eficientemente diante das dificuldades do acesso ao código escrito, as chamadas dificuldades leitoras ou dislexias pedagógicas.
Quero dizer o seguinte: é papel do professor ensinar o aluno a aprender mais sobre os sons da língua, ou melhor, revelar-lhe como a língua se organiza no âmbito da fala ou da escrita.
Quando me refiro à fala, estou me afirmando, de alguma modo, que é imprescindível tomá-la como ponto de partida para o estudo dos sons da fala, dos fonemas da língua: consoantes, vogais e semivogais.
As dificuldades de leitura, em particular, têm sua problemática agravada por conta da má sistematização, em sala de aula, do estudo dos sons da fala, em geral, mal orientado por pedagogia ou metodologia de plantão: afinal, qual o melhor método de leitura? O fônico ou o global? Como transformar a leitura em uma habilidade estratégica para o desenvolvimento da capacidade de aprender e de aprendizagem do aluno?
Assim, um ponto inicial a considerar é a perspectiva que temos de leitura no âmbito escolar. Como lingüística, acredito que a perspectiva psicolingüística responde a série de questionamentos sobre o fracasso da leitura na educação básica.
A alma e o papel, o pensamento e a linguagem, a fala e a memória, todos esses componentes têm um papel extraordinário na formação para o leitor proficiente.
Em geral, os docentes não partem, desde o primeiro instante de processo de alfabetização escolar, da fala. A fala recebe uma desprezo tremendo da escola e é fácil compreender o porquê: a escrita é marcador de ascensão social ou de emergência de classe social.
A escrita é ideologicamente apontada como sendo superior a fala. A tal ponto podemos considerar essa visão reducionista da linguagem, que quem sabe falar, mas não sabe escrever, na variação culta ou padrão de sua língua, não tem lugar ao sol, não tem reconhecimento de suas potencialidades lingüísticas. Claro, a escrita não é superior à fala nem a fala superior à escrita. Ambas, importantes e interdependentes.
As crianças, falantes nativas de sua língua, chegam à escola para ler, mas primeiro escrevem para ler, lêem para escrever. É como se a escola invertesse a lógica da língua natural que, antes de tudo, tem sua âncora na fala. O caminho, mais adequado ao ensino eficaz da língua materna, é pensarmos em método que parta da fala, ou seja, garantirmos a fala para a habilidade leitora: deve-se, pois, dar liberdade de falar para garantir uma leitura fluente. Quem não adquire confiança no seu ato de falar, como pode ter fluência ou velocidade no seu ato de ler?
Uma pedagogia da lectoescrita, tradicional, tradicionalista e centrada no professor e no ensino, denuncia que, no meio escolar, os professores ditam palavras, frases e pequenas orações e as crianças, como escribas, escrevem, escrevem e se tornam copistas. Se pensarmos em método, eis aqui um flagrante fracasso pedagógico com a imposição de tal procedimento: a escrita realmente é ponto de chegada e não de saída no ensino lectoescritor de leitura, escrita e cálculo.
Certo é que a escola abafa a fala, manancial importantíssimo na formação para leitura e para a expressão oral. A escola paga um preço alto por tal atitude: as crianças deixam de aprender a ler, a escrever e a grafar corretamente as palavras na língua padrão culta. A escola gera o seu próprio fracasso.
No final de oito anos de ensino fundamental, encontrar crianças inibidas, acanhadas nos corredores, não tenhamos dúvida, vem muito da interdição da fala, e, conseqüentemente do corpo e da alma. A fala é expressão de nossa alma, do nosso sentimento ou pensamento. Nós somos a expressão da nossa fala.
A escola insistir em partir da escrita, a ortográfica, e despreza um componente importante na compreensão da linguagem, que é fala, ou mais precisamente os sons da fala, os fonemas da língua materna.
Aos três anos de idade, na educação infantil, as crianças já são nativas de sua língua e sabem muito da organização da língua materna, de sua regularidade, de sua estrutura e signos e significados que expressam no cotidiano, a partir da sua própria fala espontânea.
A escola desconhece essa informação que qualquer manual de psicológica da criança ensina: a fala é ponto de partida do ensino da língua. Qualquer dúvida sobre essa hipótese, pode se pôr à prova através de uma simples observação direta das crianças, sem maiores rigorosos abstratos: realmente partir da fala faz com que a criança perceba que traz consigo um rico manancial de informações preciosas sobre a linguagem verbal escrita.
A fala na educação infantil é rico laboratório para os docentes. Por ela, desenvolve-se na criança a percepção auditiva, fundamental para o ensino da leitura. Ensinar a perceber o mundo, forma de fazer leitura do seu cotidiano, é mais importante do que memorizar formas lingüísticas, das regras do bem dizer. A verdadeira teoria da linguagem vem do olhar, da observação. Olhar para o mundo, suas circunstâncias, é uma forma de apreende-lo de forma sistemática e inspiradora.
É mais fácil uma criança guardar na memória aquilo que apreende com a percepção do que aquilo que aprende com imposições de deveres, regras ou tarefas escolares. A escola, infelizmente, não percebeu a validade dessa informação didática. A escola, precisa, urgente, revelar suas metodologias, suas partes na direção de um aprendizado eficaz da lectoescrita (leitura, escrita e cálculo).
As relações entre linguagem oral e escrita são, na verdade, o primeiro passo para o trabalho eficaz, no ambiente escolar, a título de aquisição e desenvolvimento da leitura.
O que é a escrita senão o espaço material, objetivo, concreto, real, visível de expressão e representação da fala, da linguagem oral? Minha pergunta, na verdade tem uma resposta contumaz: a escrita busca no reino da fala a sua expressão material.
As crianças, desde cedo, devem perceber que há uma relação muito estreita entre fala e escrita.
A escrita é o esforço cultural e civilizatório do homem de representar, através de sua percepção visual, os sons da fala, da sua expressão oral. A alfabetização não vem apenas do olhar, mas da escuta ativa dos sons da fala.
A boa alfabetização não viria, pois, a rigor, nem se justificaria mesmo, com o uso, em sala de aula, de cartilhas de ABC, mas com a valorização, no interior da escola, da expressão oral: isto é, defendo aqui que a alfabetização escolar se dê inicialmente com os sons da fala, uma alfabetização fonológica, para, em seguida, transformar-se em alfabetização ortográfica. A fala precede a escrita na vida e na escola, quer queiramos ou não. É um fato lingüístico, mas nem por indução, é lógica para escola e para muitos educadores.
O segundo ponto que considero importante é a formação para
consciência fonológica e o domínio das habilidades metafonológicas para o desenvolvimento da leitura fluente.
A consciência fonológica vem com o ensino formal e sistemático da correspondência entre letras e fonemas da língua. Existem mais sons da fala do que letras para representa-los, Daí, a correspondência entre letras e fonemas não ser unívoca, mas equívoca.
Por exemplo, o som /a/ é, em boa parte, na escrita, representado
pela letra “a”. O som /b/ (leia-se bê) é representado na escrita pela letra b. Mas, a letra “c” pode representar o som /s/ (leia-se sê) ou o som /k/ (leia-se cá), dependendo do ambiente fonológica. Em casa, a letra “c” representa o som /k/, mas em cebola, a letra “c” representa o som /s/. Ora, isso, sim, que precisa ser bem ministrado pelos docentes e não pode ser ensinado, outrossim, por qualquer pessoa, por uma pessoa sem habilitação e, a rigor, é uma rigor exclusiva para um pedagoga com formação lingüística ou para um lingüista com formação pedagógica. Quem pretende ser alfabetizador ou alfabetizadora devem conhecer a fonologia da língua materna, especialmente os fonemas consonantais.
Quando as crianças, na faixa de 3 a 6 anos de idade, aprendem os fonemas da língua são levadas, no ensino fundamental, já entre 7 a 14 anos de idade, à consciência fonológica e às habilidades fonológicas. Por exemplo, saber quantas letras e fonemas possui uma palavra, discrimina-las uma a uma, ou fazer sua divisão silábica revela muito da capacidade fonológica da criança.
Quem adquire, na idade própria, a consciência dos sons da fala pode relacionar esta habilidade lingüística com a aprendizagem da leitura nos anos subseqüentes. O que é ler um texto senão decantar os sons da fala ali, em enigma, na escrita ortográfica?
O trabalho com a consciência fonológica favorece ao ensino da ortográfica. O que é a ortografia senão uma representação, na escrita, dos sons da fala? Portanto, ler ajuda na consciência ortográfica. Grafar bem as palavras ajuda no ato de ler com proficiência.
Por que a escola não alcança essa consciência da língua e de sua estreita relação com suas habilidades lingüísticas (leitura, escrita, escuta e fala)?

Vicente Martins é professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú(UVA), de Sobral,

O PAPEL DO PROFESSOR NA FORMAÇÃO DE BONS LEITORES

O papel do professor na formação de bons leitores
Vicente Martins

O principal desafio dos governos, estabelecimentos de ensino e docentes, no meio escolar, é o de levar o aluno ao aprendizado da leitura, escrita e cálculo.
O que deveria ser básico no processo ensino-aprendizagem se tornou um desafio aparentemente complexo para os educadores do século XXI: assegurar ao educando a aprendizagem escolar.
Por que o domínio básico de lectoescrita se tornou tão desafiador para o sistema de ensino escolar? Por que ensinar a ler não é tão simples? Como desvelar o enigma do acesso ao código escrito?
Em geral, quando nos deparamos com as dificuldades de leitura ou de acesso ao código escrito, esperamos dos especialistas métodos compensatórios para sanar a dificuldade. O fracasso do ensino escolar, no entanto, não é obra exclusiva da metodologia. Muitos são os fatores que favorecem o fracasso escolar.
Nenhuma dificuldade se vence com método mirabolante. O melhor caminho, no caso da leitura, é o entendimento lingüístico, por parte dos docentes e discentes, do fenômeno lingüístico que subjaz ao ato de ler. Ler é uma habilidade lingüística e traz, por isso, todas as vicissitudes da linguagem verbal.
Ler é, ao primeiro momento, um ato de soletrar, de decodificar fonemas representados nas letras; reconhecer as palavras, atribuir-lhes significados ou sentidos; enfim, ler, realmente, não é tão simples como julgam alguns leigos. Ler é uma habilidade das mais complexas no âmbito da linguagem Qual, então, o papel do professor na formação de bons leitores? Que passos devem levar a efeito no exercício da leitura.
O primeiro passo, nessa direção, é de o professor ensinar o aluno a aprender a ler antes para, em seguida, praticar estratégias de leitura. Em outras palavras, o docente deve atuar eficientemente diante das dificuldades do acesso ao código escrito, as chamadas dificuldades leitoras ou dislexias pedagógicas.
Quero dizer o seguinte: é papel do professor ensinar o aluno a aprender mais sobre os sons da língua, ou melhor, revelar-lhe como a língua se organiza no âmbito da fala ou da escrita.
Quando me refiro à fala, estou me afirmando, de alguma modo, que é imprescindível tomá-la como ponto de partida para o estudo dos sons da fala, dos fonemas da língua: consoantes, vogais e semivogais.
As dificuldades de leitura, em particular, têm sua problemática agravada por conta da má sistematização, em sala de aula, do estudo dos sons da fala, em geral, mal orientado por pedagogia ou metodologia de plantão: afinal, qual o melhor método de leitura? O fônico ou o global? Como transformar a leitura em uma habilidade estratégica para o desenvolvimento da capacidade de aprender e de aprendizagem do aluno?
Assim, um ponto inicial a considerar é a perspectiva que temos de leitura no âmbito escolar. Como lingüística, acredito que a perspectiva psicolingüística responde a série de questionamentos sobre o fracasso da leitura na educação básica.
A alma e o papel, o pensamento e a linguagem, a fala e a memória, todos esses componentes têm um papel extraordinário na formação para o leitor proficiente.
Em geral, os docentes não partem, desde o primeiro instante de processo de alfabetização escolar, da fala. A fala recebe uma desprezo tremendo da escola e é fácil compreender o porquê: a escrita é marcador de ascensão social ou de emergência de classe social.
A escrita é ideologicamente apontada como sendo superior a fala. A tal ponto podemos considerar essa visão reducionista da linguagem, que quem sabe falar, mas não sabe escrever, na variação culta ou padrão de sua língua, não tem lugar ao sol, não tem reconhecimento de suas potencialidades lingüísticas. Claro, a escrita não é superior à fala nem a fala superior à escrita. Ambas, importantes e interdependentes.
As crianças, falantes nativas de sua língua, chegam à escola para ler, mas primeiro escrevem para ler, lêem para escrever. É como se a escola invertesse a lógica da língua natural que, antes de tudo, tem sua âncora na fala. O caminho, mais adequado ao ensino eficaz da língua materna, é pensarmos em método que parta da fala, ou seja, garantirmos a fala para a habilidade leitora: deve-se, pois, dar liberdade de falar para garantir uma leitura fluente. Quem não adquire confiança no seu ato de falar, como pode ter fluência ou velocidade no seu ato de ler?
Uma pedagogia da lectoescrita, tradicional, tradicionalista e centrada no professor e no ensino, denuncia que, no meio escolar, os professores ditam palavras, frases e pequenas orações e as crianças, como escribas, escrevem, escrevem e se tornam copistas. Se pensarmos em método, eis aqui um flagrante fracasso pedagógico com a imposição de tal procedimento: a escrita realmente é ponto de chegada e não de saída no ensino lectoescritor de leitura, escrita e cálculo.
Certo é que a escola abafa a fala, manancial importantíssimo na formação para leitura e para a expressão oral. A escola paga um preço alto por tal atitude: as crianças deixam de aprender a ler, a escrever e a grafar corretamente as palavras na língua padrão culta. A escola gera o seu próprio fracasso.
No final de oito anos de ensino fundamental, encontrar crianças inibidas, acanhadas nos corredores, não tenhamos dúvida, vem muito da interdição da fala, e, conseqüentemente do corpo e da alma. A fala é expressão de nossa alma, do nosso sentimento ou pensamento. Nós somos a expressão da nossa fala.
A escola insistir em partir da escrita, a ortográfica, e despreza um componente importante na compreensão da linguagem, que é fala, ou mais precisamente os sons da fala, os fonemas da língua materna.
Aos três anos de idade, na educação infantil, as crianças já são nativas de sua língua e sabem muito da organização da língua materna, de sua regularidade, de sua estrutura e signos e significados que expressam no cotidiano, a partir da sua própria fala espontânea.
A escola desconhece essa informação que qualquer manual de psicológica da criança ensina: a fala é ponto de partida do ensino da língua. Qualquer dúvida sobre essa hipótese, pode se pôr à prova através de uma simples observação direta das crianças, sem maiores rigorosos abstratos: realmente partir da fala faz com que a criança perceba que traz consigo um rico manancial de informações preciosas sobre a linguagem verbal escrita.
A fala na educação infantil é rico laboratório para os docentes. Por ela, desenvolve-se na criança a percepção auditiva, fundamental para o ensino da leitura. Ensinar a perceber o mundo, forma de fazer leitura do seu cotidiano, é mais importante do que memorizar formas lingüísticas, das regras do bem dizer. A verdadeira teoria da linguagem vem do olhar, da observação. Olhar para o mundo, suas circunstâncias, é uma forma de apreende-lo de forma sistemática e inspiradora.
É mais fácil uma criança guardar na memória aquilo que apreende com a percepção do que aquilo que aprende com imposições de deveres, regras ou tarefas escolares. A escola, infelizmente, não percebeu a validade dessa informação didática. A escola, precisa, urgente, revelar suas metodologias, suas partes na direção de um aprendizado eficaz da lectoescrita (leitura, escrita e cálculo).
As relações entre linguagem oral e escrita são, na verdade, o primeiro passo para o trabalho eficaz, no ambiente escolar, a título de aquisição e desenvolvimento da leitura.
O que é a escrita senão o espaço material, objetivo, concreto, real, visível de expressão e representação da fala, da linguagem oral? Minha pergunta, na verdade tem uma resposta contumaz: a escrita busca no reino da fala a sua expressão material.
As crianças, desde cedo, devem perceber que há uma relação muito estreita entre fala e escrita.
A escrita é o esforço cultural e civilizatório do homem de representar, através de sua percepção visual, os sons da fala, da sua expressão oral. A alfabetização não vem apenas do olhar, mas da escuta ativa dos sons da fala.
A boa alfabetização não viria, pois, a rigor, nem se justificaria mesmo, com o uso, em sala de aula, de cartilhas de ABC, mas com a valorização, no interior da escola, da expressão oral: isto é, defendo aqui que a alfabetização escolar se dê inicialmente com os sons da fala, uma alfabetização fonológica, para, em seguida, transformar-se em alfabetização ortográfica. A fala precede a escrita na vida e na escola, quer queiramos ou não. É um fato lingüístico, mas nem por indução, é lógica para escola e para muitos educadores.
O segundo ponto que considero importante é a formação para
consciência fonológica e o domínio das habilidades metafonológicas para o desenvolvimento da leitura fluente.
A consciência fonológica vem com o ensino formal e sistemático da correspondência entre letras e fonemas da língua. Existem mais sons da fala do que letras para representa-los, Daí, a correspondência entre letras e fonemas não ser unívoca, mas equívoca.
Por exemplo, o som /a/ é, em boa parte, na escrita, representado
pela letra “a”. O som /b/ (leia-se bê) é representado na escrita pela letra b. Mas, a letra “c” pode representar o som /s/ (leia-se sê) ou o som /k/ (leia-se cá), dependendo do ambiente fonológica. Em casa, a letra “c” representa o som /k/, mas em cebola, a letra “c” representa o som /s/. Ora, isso, sim, que precisa ser bem ministrado pelos docentes e não pode ser ensinado, outrossim, por qualquer pessoa, por uma pessoa sem habilitação e, a rigor, é uma rigor exclusiva para um pedagoga com formação lingüística ou para um lingüista com formação pedagógica. Quem pretende ser alfabetizador ou alfabetizadora devem conhecer a fonologia da língua materna, especialmente os fonemas consonantais.
Quando as crianças, na faixa de 3 a 6 anos de idade, aprendem os fonemas da língua são levadas, no ensino fundamental, já entre 7 a 14 anos de idade, à consciência fonológica e às habilidades fonológicas. Por exemplo, saber quantas letras e fonemas possui uma palavra, discrimina-las uma a uma, ou fazer sua divisão silábica revela muito da capacidade fonológica da criança.
Quem adquire, na idade própria, a consciência dos sons da fala pode relacionar esta habilidade lingüística com a aprendizagem da leitura nos anos subseqüentes. O que é ler um texto senão decantar os sons da fala ali, em enigma, na escrita ortográfica?
O trabalho com a consciência fonológica favorece ao ensino da ortográfica. O que é a ortografia senão uma representação, na escrita, dos sons da fala? Portanto, ler ajuda na consciência ortográfica. Grafar bem as palavras ajuda no ato de ler com proficiência.
Por que a escola não alcança essa consciência da língua e de sua estreita relação com suas habilidades lingüísticas (leitura, escrita, escuta e fala)?

Vicente Martins é professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú(UVA), de Sobral,

FONETICA E FONOLOGIA: QUE DIFERENÇA?

Fonética e Fonologia: Que diferença?
A Fonética

O estudo da fonética e da fonologia de uma língua é a descoberta da sua face exterior, a análise daquele nível a que temos acesso quando ouvimos alguém falar ou quando nós próprios produzimos fala; é, enfim, o estudo dos sons da língua. Note-se que o funcionamento das línguas é estudado sobre os dados da sua produção oral e não assenta, portanto, predominantemente sobre a escrita, embora possa fazer referência episódica a aspectos ortográficos. A sensação que os falantes alfabetizados têm de que as questões ortográficas são as questões linguísticas prioritárias advém de a alfabetização se processar nos primeiros anos escolares e ser rapidamente interiorizada, além de constituir, muitas vezes, o aspecto sobre que incide prioritariamente a aprendizagem escolar da língua. Mas qual é a diferença entre fonética e fonologia se ambos os estudos procuram analisar e explicar os sons de uma língua?
A fonética descreve os aspectos articulatórios e as propriedades físicas de todos os sons que ocorrem na produção linguística (o nível de superfície, a “face exposta” de uma língua). A fonologia estuda os sons que têm uma função na língua e que permitem aos falantes distinguir significados.

A Fonética
O estudo da Fonética ocupa-se da produção, da transmissão e da percepção dos sons da fala, dividindo-se, de acordo com o seu objecto, em fonética articulatória, acústica e perceptiva. Nesta apresentação são consideradas apenas as propriedades articulatórias e as propriedades acústicas dos sons.

As propriedades articulatórias
Quando o estudo dos sons tem em conta a posição e o movimento dos articuladores estamos no domínio da fonética articulatória. Deste ponto de vista, devem considerar-se os seguintes aspectos:
• O som é produzido pela pressão exercida pelos pulmões que são uma fonte de energia e colocam em movimento as partículas do ar neles contido. O ar passa então pela laringe, na qual se encontra um orifício, a glote, onde se localizam as cordas vocais que, ao vibrarem, actuam como uma fonte sonora. Os sons produzidos com vibração das cordas vocais são vozeados (ou sonoros) – as obstruintes sonoras (oclusivas e fricativas), todas as vogais e as consoantes nasais e líquidas (laterais e vibrantes).
• Em seguida, o ar entra na cavidade bucal que actua como uma caixa de ressonância. Nesta cavidade, os articuladores activos, com mobilidade – lábios, língua, palato mole ou véu palatino, e a úvula – e passivos, sem mobilidade – palato duro, alvéolos dentários e maxilar inferior –– têm funções na definição do som que o falante pretende produzir (vogais, semivogais e consoantes). Se o ar passar também pela cavidade nasal por abaixamento do véu palatino produz-se um som nasal, quer consoante (como [m] ou [n]) quer vogal (como [õ] ou [ɐ͂]). O conjunto dos órgãos do aparelho fonador que se encontram acima da laringe constitui o tracto vocal.

As Vogais
As configurações de produção dos sons determinam, no que respeita às vogais, a altura (altas, , médias [e, ɐ, o] ou baixas [a, ɛ, ɔ]) e o ponto de articulação (anteriores ou palatais, [i, e, ɛ], centrais, , e posteriores ou velares [u, o, ɔ]). As vogais do Português também podem ser classificadas em relação à posição dos lábios: arredondados na produção de [u, o, ɔ] e não-arredondados na produção das restantes vogais.
Se o véu palatino se abaixar durante a pronúncia do som, a vogal adquire nasalidade. As vogais nasais no Português Europeu são apenas altas e médias (o também não pode ser nasal). Veja-se o Quadro 1 que representa as vogais orais e nasais do PE (norma--padrão). No quadro estão marcados a altura e o ponto de articulação.

A FACE EXPOSTA DA LÍNGUA PORTUGUESA

1 A FACE EXPOSTA DA LÍNGUA PORTUGUESA
Maria Helena Mira Mateus
Faculdade de letras
Universidade de Lisboa
(Rio de Janeiro, 2001)
1. Fonologia e Prosódia
Quando alguém fala, produz um contínuo sonoro cuja interpretação não pode ser feita pelo ouvinte sem o conhecimento da língua utilizada. Por isso não somos capazes de distinguir a sucessão de sons que formam uma palavra em línguas que desconhecemos. Esse contínuo sonoro possui determinadas propriedades que estudamos na fonética e que estão presentes em todas as línguas do mundo. O estudo dessas propriedades não explica, no entanto, como podemos reconhecer o funcionamento dos sons de uma língua particular, que sequências constituem palavras, que propriedades fonéticas são usadas com valor informativo.
O estudo da fonologia responde precisamente a este desafio: como é que o falante-ouvinte consegue reconhecer, numa infinidade de sons diferentes, o conjunto de cerca de duas dezenas que constituem as unidades pertinentes, ou seja, aquelas unidades que funcionam na língua como unidades do sistema e permitem a comunicação?
Durante o processo de aquisição da linguagem, a criança, embora exposta a inúmeras pronúncias diversas das unidades da fala, vai reconhecendo progressivamente os sons com que, na sua língua materna, se constroem as palavras que servem para comunicar com os outros. A pouco e pouco, inconscientemente, ela vai apreendendo as relações que se estabelecem entre os sons e delimitando o campo de funcionamento de cada um. A pouco e pouco, portanto, vai adquirindo o sistema fonológico da língua materna, que corresponde a um exercício de abstracção elaborado a partir da realidade fonética. Os elementos do sistema fonológico são denominados fonemas distinguindo-se neles três grandes classes: vogais, consoantes e glides (ou semivogais).
O progressivo domínio do sistema fonológico é antecedido da aquisição do funcionamento dos sistema prosódico da língua que se serve das propriedades inerentes a todos os sons que são a altura, a intensidade e a duração. Na língua 2
portuguesa, dois aspectos da prosódia que têm maior importância do ponto de vista fonológico são a sílaba e o acento de palavra.
Embora o "material" fonético que todas as línguas utilizam pertença a um acervo universal, as línguas seleccionam apenas uma parte desse conjunto de sons possíveis criando assim um sistema fonológico particular. Por outro lado, na constituição das palavras, as línguas evidenciam restrições em relação às combinações aceitáveis das unidades fonológicas que seleccionaram. Em Português, por exemplo, a sequência mata constitui uma palavra, mas start é inadmissível, ainda que seja aceite em Inglês. O estudo das sequências possíveis em cada língua e da sua distribuição denomina-se fonotáctica.
Note-se ainda que o facto de se falar em sistema fonológico implica que em cada língua todas as unidades estabelecem com as outras uma relação constante e delimitam de forma diversa o seu espaço relativo, razão por que nem todas possuem o mesmo número de fonemas. Assim, como podemos ver no Quadro 1, enquanto o Francês tem um sistema de 10 vogais orais, o Português (europeu) possui 9, o Espanhol 5 e certas línguas caucásicas servem-se apenas de 3.
FRANCÊS PORTUGUÊS
i y u i ˆ u
e ø o e o
E ç E å ç
a a
ESPANHOL L. CAUCÁSICAS
i u i u
e o
a a
Relativamente aos sistema prosódico, também as línguas utilizam de forma diversa as propriedades de duração (ou tempo), de tom (ou altura) e de intensidade (ou força expiratória) que são intrínsecas aos sons.
O objectivo da fonologia como estudo dos sistemas de sons das línguas é, portanto, o de explicar o funcionamento desses sistemas, enquadrando a explicação numa teoria da linguagem e desenvolvendo métodos e técnicas que permitam determinar os sistemas fonológicos das línguas particulares. Ao estudarmos a fonologia de uma língua com base numa teoria da gramática comum ao estudo de 3
outras línguas estamos, ao mesmo tempo, a contribuir para o estabelecimento de princípios universais que organizam o funcionamento de todos os sistemas fonológicos.
O que pode entusiasmar no estudo da fonologia é a descoberta de como é possível, com um número reduzido de elementos, construir um número ilimitado de frases que respondem a todas as nossas necessidades de comunicação.
2. Fonemas e fones
Em todas as línguas existem palavras que têm significados diferentes e se distinguem apenas por um som. Em Português, por exemplo, as palavras bala e pala, com significados diversos, só se diferenciam nas consoantes iniciais que são, respectivamente, [b] e [p] (indicados aqui entre parêntesis rectos por nos estarmos a referir à sua representação fonética). Estes sons que distinguem palavras são unidades distintivas e correspondem a fonemas do Português; os pares de palavras como bala e pala que servem para os determinar são pares mínimos porque só se distinguem numa unidade. O método de substituição (ou de comutação) de um som por outro mantendo a mesma sequência foi aplicado pela escola estruturalista. Utilizando este método de comutação, se formos verificando alterações de significado das palavras poderemos determinar todos os fonemas do Português (os fonemas indicam-se entre barras oblíquas, //). Assim, em sala [sálå] e saca [sákå] identificamos /l/ e /k/, em traça [tráså] e praça [práså] encontramos /t/ e /p/ e em pá [pá] e pé [pE;´;] temos /a/ e /E/.
As realizações fonéticas dos fonemas são os fones (que se representam entre parênteses rectos, []). Nas palavras calo e caldo, que se pronunciam [kálu] e [ká…du], temos duas pronúncias do /l/. No entanto essas duas pronúncias não correspondem a dois fonemas distintos porque nunca podemos opor esses dois sons num par mínimo. Na realidade, os sons correspondentes ao /l/ em início de palavra ou entre vogais ([kálu]) - ou seja, no início da sílaba - e em fim de palavra ou antes de uma consoante ([ká…du]) - ou seja, no fim da sílaba - são dois fones do mesmo fonema, dois alofones que se denominam variantes contextuais. Neste caso, as variantes dependem da posição do fonema na palavra; como os dois sons nunca ocorrem na mesma posição - estão distribuídos em diferentes contextos - diz-se que se encontram em distribuição complementar.
Existem ainda variantes que distinguem sociolectos ou dialectos: por exemplo, o /s/ pronuncia-se em certas regiões de Portugal com o ápice da língua junto dos 4
alvéolos (é o conhecido s "beirão") e em outras regiões, como Lisboa, a sua pronúncia é dental. No primeiro caso representa-se como [°] e no segundo como [s]. Mas como nunca se podem opor um ao outro no mesmo dialecto para distinguir significados, constituem duas variantes dialectais correspondentes ao mesmo fonema /s/. As diferentes pronúncias que decorrem da diversidade dialectal ou sociolectal designam-se variantes livres por não dependerem de um contexto fonético. Também se designam assim as variantes das diversas variedades da língua.
Os fonemas do português, que constituem o sistema fonológico e são comuns às variedades da língua, embora apresentem algumas diferenças fonéticas entre dialectos, são os seguintes:
Consoantes iniciais
pala /p/ fala /f/ mata /m/
bala /b/ vala /v/ nata /n/
tia /t/ zurra /z/ lata /l/
dia /d/ surra /s/ rata /R/
cato /k/ chá /S/
gato /g/ já /Z/
Consoantes mediais (entre vogais)
ripa /p/ estafa /f/ caro /r/ mama /m/
riba /b/ estava /v/ carro /R/ mana /n/
lato /t/ caça /s/ manha /¯/
lado /d/ casa /z/ mala /l/
vaca /k/ queixo /S/ malha /λ/
vaga /g/ queijo /Z/
Consoantes finais
mal /l/ mar /R/ más /s/
Em posição medial encontra-se o número máximo de consoantes (/¯/ e /¥/ só ocorrem no início de alguns empréstimos, especialmente dos vocabulários castelhano, africano e brasileiro com origem indígena, como nhandu ou lhano). No fim de palavra, como é habitual na maior parte das línguas, o número de consoantes admitidas é muito reduzido. 5
A pronúncia de /s/ em posição final merece uma referência especial: se a palavra anteceder uma pausa, o fonema realiza-se como [S]; se for seguida de outra palavra, a sua realização será [z] se anteceder uma vogal (más aves [máz ávˆS]) e [Z] ou [S] conforme a consoante que se seguir for sonora ou não sonora (más bolas [máZbç;´;låS], más passas [máSpásåS]).
Vejamos agora as vogais do Português:
Vogais
pira /i/ tela /E/ tulha /u/
pera /e/ tola /ç/ talha /a/
tola /o/ telha /å/
As vogais acima indicadas são orais e todas são acentuadas ou tónicas. O Português europeu possui ainda uma outra vogal que só ocorre como não acentuada: a vogal [ˆ] que se pode identificar no par mínimo pelar [pˆlár] / pular [pulár]. Veremos adiante que esta vogal está em distribuição complementar com as vogais /e/ e /E/ acentuadas ([pE;´;lu] / [pélu] / [pˆlár]). O [ˆ] é portanto um alofone dos fonemas /e/ e /E/.
Em Português também existem vogais nasais que constituem um aspecto caracterizador da língua, visto que grande parte das línguas do mundo não possuem este tipo de vogais.
Vogais nasais
pinte /i;~/ mando /å;~;´/
pente /e;~;´/ mundo /u;~;´/
ponte /o;~;´/
Além das vogais e consoantes, em português também existem glides ou semivogais. Foneticamente encontram-se próximo das vogais, mas fonologicamente distinguem-se por nunca poderem receber acento tónico e por ocorrerem sempre junto de uma vogal formando com ela um ditongo. As duas glidesdo português, /j/ e /w/, têm valor fonológico porque se podem opor entre si (p.ex. pai [páj] / pau [páw]) ou opor-se a uma consoante (p.ex. pai / par [pár]). Junto de uma vogal nasal e formando ditongo com ela, a glide recebe a nasalidade da vogal: mãe [må;~;´j;~], mão [må;~;´w;~]. 6
Para melhor exemplificação de como os fonemas podem apresentar variantes no português europeu e brasileiro, vejamos a representação fonética da mesma frase nas variedades de Lisboa (adiante PE) e do Rio de Janeiro (adiante PB), com distinção de registos (pausado e rápido):
"A Maria faltou ao teste de psicologia"
(1) [å måríå fa…tó aw tE;´;Stˆ dˆ psikuluZíå] (pausado PE)
(2) [å måríå fa…tó aw tE;´;St d psikluZíå] (rápido PE)
(3) [a maríå fawtów aw tE;´;StSi dZi pisikoloZíå] (pausado PB)
(4) [a maríå fawtó aw tE;´;StSi DZi pisikoloZíå] (rápido PB)
Analisemos em pormenor as diferenças:
Vogais
a) A vogal átona [ˆ] só ocorre no registo pausado e silabado de PE (cf. (1)); a mesma vogal é suprimida no registo rápido (cf. (2)) e ocorre como [i] no PB (cf. (3) e (4));
b) A vogal correspondente à grafia o, quando átona, manifesta-se como [u] em PE (cf. (1) e (2)) e como [o] no PB (cf. (3) e (4));
c) a vogal ortografada a quando átona apresenta-se como [å] em PE e como [a] em PB, excepto em posição final;
d) o ditongo [ow] reduz-se à vogal [o] em PE e no registo rápido de PB (cf. (1), (2) e (4)), e apenas se manifesta na pronúncia pausada de PB (cf. (3));
Consoantes
e) A consoante correspondente à grafia l na palavra faltou é velarizada, […], em PE (cf. (1) e (2)), e semivogal [w] em PB (cf. (3) e (4));
f) As consoantes [t] e [d] seguidas de [i] tornam-se respectivamente [tSi] e [dZi] em PB (cf. (4));
g) O grupo de consoantes [ps] que não constitui em português um 'grupo próprio' (denominação tradicional atribuída a outros grupos como [br], consoante oclusiva seguida de líquida), manifesta, em PB, a inserção de um [i] designado epentético (cf. (3) e (4)); 7
h) O s gráfico ocorre como [S] antes de uma consoante não-sonora (e em final de palavra) em PE e PB .
As constatações acima feitas merecem algumas considerações.
(a) As vogais átonas que distinguem as duas variedades da língua ([ˆ] / [i], [u] / [o] e [å] / [a]) podem considerar-se alofones dos mesmos fonemas. Contudo, esta simples verificação não nos permite explicar que se trata nos três casos de processos relacionados que caracterizam as duas variedades. O mesmo sucede com a sequência [tˆ] (PE) e o seu alofone [tSi] (PB). Para os relacionarmos entre si teríamos de partir de um único fonema, comum às duas variedades, e ver o que sucedeu nos vários casos. O mesmo processo devia ser seguido para a explicação da supressão das vogais [ˆ] e [u] átonas em PE e da inserção de [i] em [pisikoloZía].
(b) As variantes [l] e […] / [w] estão em distribuição complementar, ocorrendo respectivamente antes de vogal e antes de consoante ou fim de palavra. Este contexto é mais bem entendido se tivermos em conta a sílaba, visto que [l] se encontra em início de sílaba e […] / [w] no fim de sílaba. Por aqui vemos já que a consideração da sílaba é importante.
Finalmente, a diferença existente entre dois ou mais fonemas da língua pode desaparecer em certos contextos, isto é, pode ser neutralizada. As palavras bola [bólå], bola [bç;´;lå] e bula [búlå] distinguem-se pelos três fonemas do português /o/, /ç/ e /u/. Em posição átona, contudo, esta diferença neutraliza-se em português europeu e só encontramos [u] (bolinha / bulinha [bulí¯å].
Nesta breve apresentação da fonologia e da prosódia do português tive que, obrigatoriamente, fazer uma selecção dos aspectos a tratar. Escolhi uma questão fonológica e duas prosódicas que apresentarei resumidamente. São elas: o sistema das vogais átonas no português europeu, o acento de palavra e a sílaba.
3. Vogais átonas no PE
Disse atrás que a diferença entre /o/, /ç/ e /u/ fica netralizada em sílaba átona. Vejam-se os seguintes exemplos:
Tónicas Átonas
p[ç;´;]rta p[u]rteiro
s[ó]pa s[u]peira
f[ú]ro f[u]rar 8
Mas não são apenas estas vogais que sofrem neutralização em sílaba átona. Vejam-se os exemplos abaixo:
f[E;´;]sta f[ˆ]stejo
d[é]do d[ˆ]dada
Nestes casos uma terceira vogal substituiu as outras duas: a vogal reduzida [ˆ].
Finalmente, eis o que sucede com as outras vogais tónicas /a/, /i/ e /u/:
m[á]r m[å]rinho
m[í]lho m[i]lheiral
f[ú]ro f[u]rador
A vogal /a/ realiza-se sempre como [å] em sílaba átona. As vogais /i/ e /u/ não sofrem alteração.
Para entendermos que se dá, nas vogais em sílaba não acentuada do PE, uma alteração regular que constitui o processo sistemático do vocalismo átono do português europeu, temos que classificar as vogais relativamente ao seu grau de abertura e ao ponto de articulação. Nesta classificação consideram-se vogais altas, médias e baixas, e recuadas ou não recuadas, de acordo como se apresenta no quadro 1:
Quadro 1
i ˆ u altas
e o médias
å
E ç baixas
a
não recuadas recuadas
Perante este quadro, e tendo presentes as neutralizações das vogais em sílaba átona, verifica-se que se dá, em português europeu, um processo de elevação: as 9
baixas e médias passam a altas, e as altas não sofrem alteração. As vogais altas são, por natureza, mais reduzidas que as outras, e por isso pouco audíveis. Podemos dizer que a fase última deste processo é a supressão das vogais altas, facto que se constata habitualmente na fala coloquial, sobretudo em relação à vogal neutra [ˆ]. A vogal central /a/ também se eleva mas realiza-se como média, [å], e por isso resiste mais facilmente à supressão.
Finalmente, verifica-se ainda que as vogais não recuadas passam a recuadas por um processo de recuo que é também característico do português europeu. Os processos a que estão sujeitas as vogais átonas do português resultam assim da aplicação de duas regras fonológicas gerais de elevação e de recuo.
Quadro 2
i ˆ u altas
e o médias
å
E ç baixas
a
não recuadas recuadas
4. Nível prosódico: a Sílaba e o Acento
4.1. Sílabas
Numa palavra como calo não encontramos apenas os fonemas que a constituem e que podemos identificar por oposição a outras palavras (cabo, talo, colo, etc.). Um falante do Português sabe que pode dividir essa palavra em duas partes (ca-lo), as suas duas sílabas. A sílaba é uma construção perceptual, isto é, criada no espírito do ouvinte. Argumentos para considerar a existência da sílaba:
- Intuição do falante (utilização, na alfabetização, do ‘sentimento’ da existência real das sílabas) 10
- Lapsi linguae (metáteses de constituintes silábicos como em *aminal por animal, *zagolina por gasolina e *mánica por máquina, *camalidade por calamidade, *escândola por escândalo, *ragafa por garrafa, *burruçado por rebuçado)
- Existência de escritas silábicas;
- Reduplicação na linguagem das crianças (exs.: mamã, papá…)
- Jogos de palavras e linguagens secretas (língua dos ‘pês’, linguagem dos estivadores de Alfama, em Lisboa – ujamfi por fujam, édrapi por pedra)
- Poesia e ritmo (contagem de sílabas, rima silábica).
As sílabas mais frequentes nas línguas do mundo são constituídas por uma consoante e uma vogal (CV) e são também as mais frequentes em Português. Nesta forma canónica da sílaba, a consoante e a vogal correspondem à sua grande divisão interna: o ataque e a rima. Mas porque uma sílaba pode ser constituída apenas por uma vogal (como na primeira sílaba de a-bre, p.ex.), esta é o seu elemento mais importante, que funciona como centro e se denomina núcleo. No caso da primeira sílaba de a-bre, núcleo e rima coincidem. Em Português os núcleos silábicos são sempre vogais, mas existem muitas línguas em que certas consoantes podem ocupar esse lugar, como o [l;] silábico da segunda sílaba na palavra inglesa bottle [´bowtl;], o [r;] silábico do sérvio krv [´kr;v] ('sangue') ou o [n;] silábico do inglês button [´b√tn;]. Normalmente, essas consoantes são apenas /l/ e /r/ (as líquidas) e as nasais; contudo, palavras como psst mostram que, em certas circunstâncias, até uma fricativa como [s] pode ocupar o centro silábico.
As glides nunca podem funcionar sozinhas como núcleos de sílabas e esse é o aspecto que principalmente as distingue das vogais. No entanto, ao formarem ditongos com as vogais, as glides integram-se no núcleo, como nos exemplos seguintes:
(1) fiéis [E;´;j] judeu [éw]
mãe [å;~;´j;~] faliu [íw]
A sílaba situa-se num nível diferente do segmento. Os constituintes da sílaba são:
Ataque: consoante que antecede a rima
Rima: sequência do núcleo e da consoante que se lhe segue
Núcleo: qualquer vogal
Coda: consoante final da rima 11
Estes constituintes estão hierarquicamente organizados no interior da sílaba, sendo a rima o único constituinte obrigatoriamente preenchido. Assim, da unidade ‘sílaba’ dependem o ataque e a rima, e desta última dependem o núcleo e a coda. Representação das sílabas da palavra patas.
(2) Representação das sílabas da palavra ‘patas’
σ σ
A R A R
N N Cod
p a t a s
O Ataque da sílaba
Todas as consoantes isoladamente podem ser ataque de sílaba, no início ou no meio da palavra (excepto, como se vê em (3), as consoantes [¥], [¯] e [R] no início de palavra).
(3) pa-pa [p-p] fo-fa [f-f] li-lás [l-l] ca-ro [ -R]
ba-ba [b-b] vi-ve [v-v] ta-lha [ -¥] ca-rro [ -{]
te-ta [t-t] sen-so [s-s] ra-ro [{- ]
de-do [d-d] zon-za [z-z] ma-mar [m-m]
co-ca [k-k] cho-cho [S-S] ni-nar [n-n]
ga-go [g-g] je-jum [Z-Z] se-nha [ -¯]
Os ataques constituídos por sequências de consoantes têm restrições. Em (4) estão incluídas sequências aceitáveis em Português por serem constituídas por uma consoante oclusiva seguida de uma líquida, ou seja, uma oclusiva seguida de uma vibrante ou de uma lateral. 12
(4) (a) Oclusiva+vibrante
[pR] - prato [pR] - comprar
[bR] - branco [bR] - abraço
[tR] - trapo [tR] - retrato
[dR] - droga [dR] - sindroma
[kR] - cravo [kR] - acre
[gR] - graça [gR] - regra
(b) Oclusiva+lateral
[pl] - plano [pl] - repleto
[bl] - bloco [bl] - ablução
*[tl] [tl] atleta
*[dl] *[dl]
[kl] - claro [kl] - recluso
[gl] - glande [gl] - aglomerar
Estas sequências de oclusiva seguida de líquida (também chamadas tradicionalmente "grupos próprios") respeitam o Princípio de Sonoridade a seguir definido:
(5) Princípio de Sonoridade:
A sonoridade dos segmentos que constituem a sílaba aumenta a partir do início até ao núcleo e diminui desde o núcleo até ao fim
A sonoridade intrínseca dos segmentos permite a elaboração de uma escala, aqui apresentada no sentido crescente.
(6) Escala de sonoridade:
consoantes oclusivas (não-vozeadas, vozeadas) < fricativas (não-vozeadas, vozeadas) < nasais < líquidas (vibrantes, laterais) < glides < vogais (altas, médias, baixas).
Assim, um ataque formado por uma fricativa seguida de uma oclusiva, ou de duas consoantes com o mesmo grau de sonoridade, infringem o princípio acima definido. 13
Em função do que fica dito sobre o princípio de sonoridade, as seguintes sequências não deveriam ser aceitáveis. Elas ocorrem, no entanto, no nível fonético do Português Europeu.
(7) (a) Fricativa+vibrante (b) Fricativa+lateral
[fR] -frio [fR] - refrescar [fl] - flor
[vR] - palavra
(c) Oclusiva+oclusiva (d) Oclusiva+fricativa
[pt] - captar [ps] - psicologia
[bd] - abdómen [bs] - absurdo
[kt] - pacto
(e) Oclusiva+nasal (f) Fricativa+oclusiva
[pn] - pneu [dm] - admirar [ft] - afta
[tm] - ritmo [gn] - gnomo
Estas violações verificam-se no nível fonético do Português Europeu, mas não se verificam no nível fonológico. Pelo contrário, neste último nível existem núcleos de sílaba não preenchidos entre as duas consoantes, ou seja, núcleos vazios que não têm realização fonética. Esta hipótese baseia-se nos seguintes argumentos:
(a) Na translineação (divisão gráfica de uma palavra) constatam-se dificuldades de divisão das ‘sequências violadoras’, decorrentes da dificuldade de distribuição das duas consoantes pelas duas sílabas a que pertencem. Por exemplo, em palavras como admirar, a hesitação entre ad-mirar e a-dmirar deve-se a duas interpretações: uma etimológica, ad+mirare, e outra silábica a – dmirar. Se dm fosse um grupo próprio, o falante saberia que não podia separar as duas consoantes e que ambas pertenciam ao ataque da sílaba, pelo que não hesitaria na divisão ortográfica da palavra.
(b) Durante a aquisição da linguagem, as crianças inserem frequentemente vogais nas sequências não admissíveis (e.g. *peneu [pˆnéw] por pneu ou *afeta [áfˆtå] por afta), o mesmo se passando quando se "soletra" uma palavra com estas características.
(c) Em muitos dialectos do Português brasileiro encontra-se uma vogal introduzida (normalmente [i]) entre consoantes que não formam um ataque aceitável,
14
passando então a constituir duas sílabas (exemplos em (8)). A vogal inserida denomina-se epentética.
(8) pneu [pi-néw]
gnomo [gi-nç;´;mu]
psicologia [pi-sikoloZíå]
absurdo [abi-súRdu]
captar [kapi-táR]
pacto [páki-tu]
afta [áfi-tå]
Esta vogal epentética nunca ocorre entre consoantes que formam grupos próprios (p.ex. prato nunca se realiza como *[pi-Rátu], branco, não ocorre como *[bi-Rå;~;´;ku], palavra não se pronuncia *[palá-vi-Rå],).
Além das sequências indicadas, ainda existem, no nível fonético do Português Europeu, mais sequências que violam o princípio de sonoridade em consequência da supressão da vogal átona [ˆ] na fala coloquial. Ver exemplos em (9) e (10).
(9) [S] ou [Z] inicial de palavra seguido de consoante
[St] estar [StáR]
[Zd] esdrúxula [ZdRúSulå]
[Zv] esvair [ZvåíR]
[Zl] eslavo [Zlávu]
[Zm] esmagar [ZmågáR]
(10) Supressão de [ˆ] entre consoantes mediais
(a) grupos de duas consoantes
pequeno [pkénu]
decifrar [dsifRáR]
seguro [sgúRu]
meter [mtéR]
soterrar [sut{áR]
cometer [kumtéR] 15
(b) grupos de mais de duas consoantes
telefone [tlfç;´;n]
merecer [mRséR]
depenicar [dpnikáR]
rememorar [{mmuRáR]
despegar [dSpgáR]
despregar [dSpRgáR]
desprestigiar [dSpRStiZiáR]
Nestes exemplos encontram-se, no nível fonético, sequências de 3 consoantes (e.g. depenicar [dpn] - oclusiva+oclusiva+nasal), de 4 consoantes (e.g. despegar [dSpg] - oclusiva+fricativa+oclusiva +oclusiva), de 5 consoantes (e.g., despregar [dSpRg] -oclusiva+fricativa+oclusiva+vibrante+oclusiva) e, mesmo, de 6 consoantes (e.g. desprestigiar [dSpRSt] - oclusiva+fricativa+oclusiva+vibrante+fricativa+oclusiva.
Esta característica é responsável por um dos aspectos mais peculiares da diferença de ritmo entre o Português Europeu e o Português brasileiro.
4.2. A Rima da sílaba
Como se disse, a rima integra obrigatoriamente um núcleo, e opcionalmente uma coda. Apresenta-se e discute-se em seguida a estrutura interna destes dois constituintes.
O núcleo
Todas as vogais orais e nasais podem ser núcleo de sílaba em Português, como se comprova nos seguintes exemplos: vi, lê, pé má, da, mó, avô, tu, fim, pente, irmã ponte, fundo. Nestes casos, trata-se de um núcleo simples. Os núcleos complexos ou ramificados são constituídos por um ditongo decrescente (um "verdadeiro" ditongo) formado por vogal e glide. Vejam-se exemplos em (11) em que se relaciona a posição os ditongos com a acentuação da palavra.
(11) (a) Ditongos acentuados (b) Ditongos pré-tónicos
queixa [kå;´;j-Så] queixume [kåj-Sú-mˆ]
papéis [på-pE;´;jS] 16
bairro [báj-{u] bairrista [baj-RíS-tå]
rói [{ç;´;j]
boi [bój] boiada [boj-á-då]
azúis [å-zújS] cuidado [kuj-dá-du]
viu [víw]
deus [déwS] endeusar [e;~;-dew-záR]
véu [vE;´;w]
pauta [páw-tå] pautar [paw-táR]
mãe [må;~;´;j;~;]
cem [så;~;´;j;~;]
põe [po;~;´;j;~;]
mão [må;~;´;w;~;]
(c) Ditongos pós-tónicos
fáceis [fá-såjS]
batem [bá-tå;~;j;~;]
falam [fá-lå;~;w;~;]
homem [ç;´;-må;~;j;~;]
sótão [sç;´;-tå;~;w;~;]
Os dois elementos dos ditongos pertencem ao núcleo. Nos ditongos nasais a sua integração no núcleo é comprovada por ambos os segmentos serem nasalizados em e pertencerem ao núcleo da sílaba.
A glide é marcada lexicalmente com a indicação de que não pode ser acentuada, e tem que ser precedida de outra vogal. Foneticamente, a pronúncia da glide é mais breve do que a da vogal. Do ponto de vista silábico, a glide não pode constituir um núcleo de sílaba independente e agrega-se à vogal precedente para formar um núcleo complexo. Há outras vogais /i/ e /u/ que estão igualmente marcadas no léxico como não-acentuáveis (p.ex. o [i] de dúvida [dúvidå] ou o [u] de estímulo [Stímulu]) mas não se realizam como glides por não serem precedidas de vogais. Quando as vogais /i/ e /u/ estão antecedidas de outra vogal mas não são marcadas lexicalmente como não-acentuáveis, elas não se tornam glides e recebem o acento de palavra (p.ex. Luís [luíS], concluído [kõkluídu], país [påíS]).
Por outro lado, se uma vogal /i/ ou /u/ preceder outra vogal e não receber acento, poderá ocupar sozinha um núcleo de sílaba ou agregar-se à vogal seguinte constituindo um 17
ditongo "crescente" no nível fonético, o que dá lugar a duas realizações possíveis como as de pião ([piå;~;´w;~] ou [pjå;~;´w;~]), suar ([suáR] ou [swáR]), miúdo ([miúdu] ou [mjúdu]), ou criais ([kRiájS] ou [kRjájS]). As duas pronúncias correspondem a dois registos do discurso: pausado no primeiro caso, coloquial ou rápido no segundo. Nas sílabas que integram ditongos crescentes, a glide faz parte do ataque e não do núcleo, visto que ela não é nasalizada antes de uma vogal nasal (e.g. pião [pjå;~;´w;~], criança [kRjå;~;´;så], coentros [kwe;~;´;tRuS]). Pelo contrário, nos ditongos decrescentes em que a glide integra o núcleo, se for precedida de vogal nasal ela é obrigatoriamente nasalizada (e.g. mãe [må;~;´j;~]).
O facto de a glide integrar o ataque na realização de certas palavras, quando se passa de um registo pausado para um registo rápido, significa que também o ataque de uma sílaba pode ser vazio no nível fonológico, vindo a glide a preencher esse vazio. Em (12) estão as representações das alterações silábicas dos dois registos de pião ([piå;~;´;w;~;] / [pjå;~;´;w;~;]) e criais ([kRiájS] / [kRjájS]).
(12) Sílabas de pião e criais em registo pausado (a) e em registo rápido (b)
(a) σ σ (b) σ
A R A R A R
N N ⇒ N
p i å;~;´ w;~; p j å;~;´ w;~;
(a) σ σ (b) σ
A R A R ⇒ A R
N N Cod N Cod
k R i á j S k R j á j S 18
Nestas representações pode observar-se que:
as palavras pião e criais têm duas sílabas no registo pausado e apenas uma no registo rápido;
o ataque da segunda sílaba, que não tem segmento associado na pronúncia pausada (portanto é vazio), integra a glide fonética passando a ser um ataque ramificado.
A coda
Como na maioria das línguas, só um número reduzido de consoantes pode ser coda de sílaba. Em Português, as consoantes em coda são apenas três, as fonológicas /l/, /R/ e /s/ com diferentes realizações fonéticas. Em (13) encontram-se alguns exemplos das codas permitidas.
(13) Codas de sílabas
par /paR/ - [páR] parte /paRte/ [páR-tˆ]
mal /mal/ - [má…] falta /falta/ [fá…-tå]
más /mas/ - [máS] peste /pEste/ [pE;´S-tˆ
mesmo /mesmo/ [méZ-mu]
No Português Europeu, a supressão de [ˆ] depois de consoante e antes de final de palavra provoca, no nível de superfície, a ocorrência de todas as consoantes em coda (p.ex. bate [bát], leve [lE;´;v], pode [pç;´;d], etc.). Não se trata aqui de um núcleo vazio, nem a consoante fica em coda na representação lexical. Na realidade, uma das provas de que existe uma vogal a nível subjacente mesmo que, normalmente, nunca ocorra em superfície encontra-se nas sequências do tipo mexe bem [mE;´;S bå;~;´;j;~;] ou mexe assim [mE;´;S åsi;~;´;]: se a consoante estivesse em fim de palavra ficaria sujeita à regra de assimilação do traço de vozeamento da consoante seguinte – e teríamos *[mE;´;Z bå;~;´;j;~;] – ou realizava-se como [z] antes de vogal – e seria *[mE;´;z åsi;~;´;]. É isso que sucede quando a consoante está em posição final no nível subjacente, por estar no final de palavra (p. ex. lápis brancos [lápiZ bRå;~;´;kuS], lápis amarelos [lápiz åmåRE;´;luS]), por ser morfema do plural (p. ex. os bons [uZ bo;~;´;S], os azuis [uz ] 19
åzújS]) ou por ser morfema da flexão verbal (p. ex. vais lá [vájZ lá], vais assim [vájz åsi;~;´;]). O facto de estas regras não se aplicarem nos exemplos atrás referidos deve-se à presença da vogal subjacente.
5. O acento de palavra
Na discussão das alterações das vogais átonas falámos diversas vezes em sílaba tónica (ou acentuada) e sílaba átona. As sílabas tónicas de uma palavra são sentidas pelo falante como mais proeminentes porque a vogal que é núcleo da sílaba acentuada possui, normalmente, as propriedades de intensidade, duração e altura em grau superior ao das outras vogais da palavra, e essa proeminência atinge toda a sílaba em que ela está integrada. O Português e todas as línguas Românicas, bem como as línguas Germânicas, utilizam as diferenças de posição do acento na palavra e as suas variações para distinguir significados e para marcar unidades rítmicas- são línguas acentuais. Em outras línguas, como a maioria das línguas africanas, o contraste entre as diferenças de altura das vogais (ou diferenças de tom) tem uma importância fonológica semelhante à do acento.
O estudo do acento de palavra em fonologia tem como objectivo identificar as regularidades que estão subjecentes à atribuição de prominência a uma determinada sílaba. Os exemplos (a) e (b) são nomes e adjectivos do Português constituídos pelo radical separado do morfema de classe (cf. (a)), ou só pelo radical (cf. (b)):
(1)(a) 'mes+a (b) me'sinh+a
re'vist+a revis'teir+o
mo'del+o mode'lad+o
'leit+e leita'ri+a
'sai+a sai'ot+e
'lind+o lin'dez+a
pe'sso+a
provo'cant+e
sin'cer+o sinceri'dad+e
(2) ani'mal (3) ca'fé
pesso'al a'vó
gramati'cal chami'né
a'mor domi'nó 20
lavra'dor alva'rá
ra'paz java'li
alti'vez ro'bô
portu 'guês pe'ru
ju'iz ba'ú
co'lher
(4) cara'pa+u (5) ir'mã
cha'pé+u jar'dim
pig'me+u co'mum
fari'se+u
(6) (a) ir'mã+o (b) 'bem
nata'çã+o des'dém
tu'fã+o re'fém
Como vemos nestes exemplos, os nomes e adjectivos regulares do Português têm o acento na última vogal do radical, ou seja, na última sílaba quer essa sílaba contenha ou não um ditongo. Quando qualquer destas palavras entra como base numa derivação, o radical da palavra primitiva constitui, com o sufixo derivacional, um radical derivacional que apresenta as mesmas características acentuais.
(c) mesinha [mˆzí¯+å]
leitaria [låjtårí+å]
amoroso [åmuróz+u]
revisteiro [{ˆviStå;´;jr+u]
segredinho [sˆgrˆdí¯+u]
altivez [a…tivéS]
pessoal [pˆsuál]
produtor [prudutór]
(7) (a) 'júbil+o (b) 'órfã+o
'árab+e vi'agem
lin'guístic+o ga'ragem
ca'tástrof+e
catas'trófic+o (c) 'frágil
calo'rífer+o 'útil
conten'tíssim+o 'cônsul
'móvel
a'çúcar
'lápis 21
Alguns nomes e adjectivos têm o acento na penúltima sílaba do radical, como dúvida [dúvid+å], ópera [ç;´;pˆr+å], açúcar [åsúkar]; alguns derivados têm também o acento na penúltima sílaba do radical derivacional, como democrático [dˆmukrátik+u]. Estas são as únicas excepções à regra geral acima indicada. As palavras em que a última sílaba do radical não pode ser acentuada são marcadas no léxico como excepções, e como tal são aprendidas pelos falantes.
Verbos
No que respeita à acentuação, os tempos verbais em Português classificam-se em três grupos:
(i) Tempos do Presente – Presentes do Indicativo e do Conjuntivo, Imperativo e Gerúndio.
(ii) Tempos do Passado – Imperfeito do Indicativo, Perfeito e Mais-Que-Perfeito do Indicativo, Imperfeito e Futuro do Conjuntivo, Infinitivo e Particípio Passado.
(iii) Tempos do Futuro – Futuro do Indicativo e Condicional.
Nos Tempos do Presente o acento incide sempre na penúltima vogal da palavra (exemplos em (8)).
Nos Tempos do Passado o acento incide sempre na vogal temática, ou seja, na vogal que se segue ao radical e que com ele forma o tema (exemplos em (9)).
Nos Tempos do Futuro o acento incide sempre na primeira vogal do sufixo. (exemplos em (10))
(8) Presente do Indicativo Presente do Conjuntivo
'falo 'bato 'parto 'fale 'bata 'parta
'falas 'bates 'partes 'fales 'batas 'partas
fa'lamos ba'temos par'timos fa'lemos ba'tamos par'tamos
(9) Pretérito perfeito
fa'l+e+i ba't+e+u par't+i+u
fa'l+á+mos ba't+e+mos par't+i+mos 22
Pretérito imperfeito
fa'l+a+va ba't+i+a par't+i+a
fa'l+á+va+mos ba't+í+a+mos par't+í+a+mos
Pretérito mais+que+perfeito
fa'l+a+ra ba't+e+ra par't+i+ra
fa'l+á+ra+mos ba't+ê+ra+mos par't+í+ra+mos
(10) Futuro e Condicional
fala+'rá bate+'rá parti'+rá
fala+'re+mos bate+'re+mos parti+'re+mos
fala+'ria bate+'ria parti+'ria
fala+'ría+mos bate+'ría+mos parti+'ría+mos
Verifica-se em (8), (9) e (10) que a sílaba acentuada pode ser a última da palavra, a penúltima ou a antepenúltima porque não é a sua posição que determina a acentuação mas sim a estrutura morfológica, tal como sucede nos nomes e adjectivos. No entanto, tendo em atenção os diversos constituintes em que ocorre o acento nas formas verbais, não é possível formular uma regra que capte a generalização desejável.
Em consequência da acentuação das palavras estar relacionada com a sua constituição morfológica, o Português pode considerar-se o que tradicionalmente se designa como uma língua de acento livre, por oposição às línguas de acento fixo, cujas palavras são sempre acentuadas numa determinada sílaba, independentemente do constituinte morfológico a que pertencem.
Certas palavras derivadas com um tipo especial de sufixos (os sufixos iniciados por z como zinho, zito, zote, e o sufixo mente) têm um acento secundário que é o acento da palavra primitiva. Esse acento secundário manifesta-se, entre outros aspectos, no facto de a vogal acentuada na palavra primitiva não ficar sujeita às regras das vogais átonas quando se forma a nova palavra derivada. Compare-se, por exemplo, bela [bE;´;l+å] / beleza [bˆléz+å] mas belamente [bE;´;l&+me;~;´;tˆ]; devagar [dˆvågár] / devagarinho [dˆvågår+í¯u] mas devagarzinho [dˆvågár+zí¯u].
A análise da acentuação nos sistemas nominal e verbal em Português mostra que a constituição morfológica da palavra permite predizer a atribuição do lugar do acento. Em consequência desta relação com a estrutura morfológica, o Português 23
considera-se uma língua de "acento livre" (como o são também o Inglês ou o Alemão), por oposição às línguas de "acento fixo" (como o Francês, o Checo ou o Swahili) em que as palavras são sempre acentuadas numa determinada sílaba, independentemente do constituinte morfológico a que pertencem.
Por que, dentre as consoantes, as obstruintes são mais fáceis de
analisar acusticamente do que as soantes? Dê exemplos de dificuldades que
podem ocorrer na análise fonético-acústica de, pelo menos, duas subclasses
de soantes e compare-as às obstruintes de mesmo local de constrição.
A produção das obstruintes tem como fonte de energia uma significante
geração de ruído no trato vocal. De acordo com os diferentes modos com que se
dá este ruído, esta classe de sons é dividida nas seguintes subclasses: a)
plosivas, cuja fonte de energia se caracteriza por uma brusca soltura do ar, que se
dá em algum ponto da cavidade oral; b) fricativas, cuja fonte de energia é o ruído
gerado quando o ar é forçado por uma constrição estreita em algum ponto da
cavidade oral; e c) africadas, cuja produção se inicia como um momento de
plosão, como das plosivas, porém, sua soltura é mais retardada, o que gera um
ruído de fricção como das fricativas. Em todas essas subclasses, a vibração das
pregas vocais pode ou não estar associada.
Já para a classe das consoantes soantes, a fonte de energia se dá pela
vibração das pregas vocais. Esta classe se divide em suas subclasses: a) líquidas,
cuja produção apresenta características tanto vocálicas quanto consonantais, já
que sua fonte de energia é a vibração das pregas vocais, assim como nas vogais
e, ainda, existe em sua produção uma obstrução no trato vocal, como nas
consoantes. As líquidas se subdividem ainda em laterais e não-laterais; e b)
nasais, cuja produção envolve a abertura do esfíncter velofaríngeo, o que leva à
participação da cavidade nasal em sua produção. Na produção das consoantes
nasais, a cavidade nasal está aberta, enquanto que a cavidade oral está
obstruída.
Como sabemos, a fonte de energia na produção das vogais também se dá
a partir da vibração das pregas vocais e as diversas configurações assumidas pelo
trato vocal constituem o filtro da produção destes sons.
No português brasileiro, as consoantes vêm preferencialmente rodeadas
por vogais do que por outras consoantes. Na análise acústica, as obstruintes são
mais fáceis de analisar do que as soantes pelo fato de serem mais facilmente
distinguidas das vogais. Como foi descrito anteriormente, a fonte de produção das
obstruintes é um ruído no trato vocal, seja de plosão, seja de fricção. No caso das
consoantes soantes, a fonte de energia é a mesma das vogais, sendo que o que
diferencia estas classes é que, nas consoantes soantes, existe uma obstrução
total ou parcial em algum ponto do trato vocal e, nas vogais, a produção ocorre
com uma passagem do ar relativamente livre pelo trato vocal.
Desse modo, a configuração do espectrograma das consoantes soantes é
relativamente semelhante à configuração do espectrograma das vogais, enquanto
que o espectrograma das obstruintes apresenta distinções mais significativas,
como por exemplo, nos sons plosivos, onde o espectrograma apresenta um
momento de silencio seguido de uma linha vertical, que representa o momento da
plosão.
As líquidas [r] e [l] têm similaridades com as vogais quanto à fonte de
energia, que é a vibração das pregas vocais. Assim, tanto as líquidas quanto as
vogais apresentam estruturas formânticas bem definidas, o que pode ser
observado no espectrograma destes segmentos. Embora as líquidas apresentem
obstrução total ou parcial em algum ponto no trato vocal, o grau de constrição
destes sons é menos intenso do que nas obstruintes. Devido a estes fatores, se
tomarmos como exemplo os pares mínimos “cara” e “cada”, poderemos verificar
que a delimitação de [r] em “cara” é mais complicada do que a de [d] em “cada”,
dadas as semelhanças acústicas entre [r] e as vogais, enquanto que [d] apresenta
uma estrutura formântica que é mais facilmente diferenciada das vogais.
Na análise acústica das consoantes nasais, também é possível identificar
características formânticas semelhantes às das vogais, devido também a estas
classes de sons apresentarem a mesma fonte de produção de energia. Assim, se
compararmos os espectrogramas dos pares mínimos “fala” e “mala“, a delimitação
da fricativa [f] se dará com mais facilidade do que a da nasal [m], já que a fricativa
é caracterizada pelo ruído de fricção, enquanto que na consoante nasal podemos
identificar formantes mais bem definidos, assim como nas vogais.

FONOLOGIA

FONOLOGIA
Ramo da Linguística que estuda os sistemas sonoros das línguas do ponto de vista da sua função no sistema de comunicação linguística. Da grande quantidade de sons que o aparelho vocal humano consegue produzir, e que é estudado pela fonética, apenas uma pequena parte é usada distintivamente em cada língua, aspecto que é precisamente desenvolvido pela fonologia. A fonologia obriga, portanto, a um exercício de abstracção a partir do nível sonoro das línguas, exercício cujo objectivo consiste na procura de generalizações significativas através da análise de fonemas, segmentos, traços distintivos ou quaisquer outras unidades fonológicas de acordo com a teoria usada. Esta mesma análise, da qual os estudos sintácticos e morfológicos constituem complementos, determina, por sua vez, a organização de um sistema de contrastes sonoros que permitem, por exemplo, explicitar as unidades fonológicas que distinguem , numa mesma língua, duas mensagens de sentido diferente (veja-se a título de exemplo a diferença fonológica no início das palavras do português – bala e mala).
Muito embora os estudos fonológicos se tenham iniciado num período histórico bastante recuado, a emergência da fonologia como ciência linguística só ocorre na primeira metade do século XX com o desenvolvimento do estruturalismo nos Estados Unidos e na Europa. Os trabalhos do Círculo de Praga, em particular as contribuições de Nikolai S. Trubetzkoi e de Roman Jakobson, permitiram reconhecer o princípio de oposição fonológica como a base da organização dos sistemas sonoros, ao passo que o estruturalismo americano, no qual se devem destacar figuras como Bloomfield e Edward Sapir, baseou o seu conceito de fonema em critérios essencialmente distribucionistas
Em 1968, a publicação da obra The Sound Pattern of English de Chomsky e Halle irá constituir uma viragem na orientação dos estudos fonológicos efectuados até então ao introduzir a fonologia generativa. Contrariamente à interpretação estruturalista da fonologia como um nível autónomo de descrição linguística, a gramática generativa considera e existência de traços fonéticos, fonológicos, morfológicos e sintácticos, pelo que o fonema enquanto unidade básica de descrição fonológica é substituído pelo que se convencionou chamar de distinctive features of a universal character (princípios substantivos universais).
Nos estudos críticos realizados na sequência da publicação de The Sound Pattern of English, surgiram diversas discussões em torno de determinadas insuficiências da teoria , sobretudo à medida que a mesma era testada em línguas com características diferentes do Inglês. Estes estudos, desenvolvidos sobretudo a partir da segunda metade da década de 70, contribuíram para o aprofundamento da análise de determinados traços prosódicos, nomeadamente o tom, a duração e a acentuação, aspectos que constituem o outro grande domínio da fonologia, além do estudo das unidades mínimas distintivas ou fonemas.
As investigações acerca do tom assumiram um papel importante para o desenvolvimento da fonologia autossegmental, teoria que baseou os seus estudos iniciais em línguas tonais, cuja estrutura sugere a existência de generalizações sobre a distribuição dos tons em representações subjacentes. Contrariamente à fonologia clássica, esta teoria considera que as representações fonológica e fonética não consistem numa única cadeia de segmentos.
A fonologia métrica, mais uma reformulação recente da teoria generativa, resultou do crescente interesse pelo estudo da acentuação. Segundo esta perspectiva fonológica, a acentuação resulta da relação entre sílabas em vez de se assumir como uma propriedade intrínseca das mesmas, abordagem que permite considerar este traço prosódico sob o ponto de vista sintagmático.
Além destas abordagens fonológicas, muitas outras se desenvolveram e aprofundaram nos últimos vinte anos do século XX, tais como, a fonologia das partículas (Sanford Shane, 1982), a fonologia lexical (Kiparski) ou a fonologia atómica, entre muitas outras, facto que comprova a actualidade dos estudos fonológicos.
FONÉTICA
Bib: John Clark: An Introduction to Phonetics and Phonology (1996); Maria Helena Mira Mateus: Fonética, Fonologia e Morfologia do Português (1990); Maria Helena Mira Mateus e Alina Villalva (org.): Novas Perspectivas em Fonologia (1985); Noam Chomski e Morris Halle: The Sound Patter of English (1968); Pierre Léon et alii: La Phonologie: lectures – les écoles et les théories (1977); Stephen R. Anderson: Phonology in the Twentieth Century: Theories of Rules and Theories of Representation (1985).
Carla Sofia Caneiro Escarduça

FONETICA - UMA ENTREVISTA COM LUIZ CARLOS CAGLIATI



1
CAGLIARI, Luiz Carlos. Fonética: uma entrevista com Luiz Carlos Cagliari. Revista Virtual de
Estudos da Linguagem - ReVEL. Vol. 4, n. 7, agosto de 2006. ISSN 1678-8931
[www.revel.inf.br].
FONÉTICA – UMA ENTREVISTA COM LUIZ CARLOS
CAGLIARI
Luiz Carlos Cagliari
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP
ReVEL – Quais foram os trabalhos fundadores em pesquisa
Fonética? Quando passou a se pensar a Fonética como uma subárea
lingüística de certa forma independente da Fonologia?
Cagliari – A Fonética é a preocupação de investigação mais antiga da
Humanidade com relação à linguagem. Todos os criadores de sistemas de
escrita tiveram que buscar na observação da fala as diretrizes para a formação
dos sistemas de escrita. Isso é particularmente claro no caso da criação do
alfabeto. Criado um sistema de escrita, surge necessariamente a ortografia, para
não deixar a escrita variar sem controle. Os ortógrafos sempre foram bons
foneticistas. Os gramáticos foram aos poucos explicando os mecanismos de
produção dos sons da fala. A grande virada aconteceu quando surgiu a
necessidade de estudar escritas antigas, com as descobertas arqueológicas do
século XVIII, vindo ao mesmo tempo uma preocupação com a origem das
línguas. Os comparatistas do século XIX tiveram que definir a Fonética em
bases mais sólidas. Na mesma época, surgiram os grandes estudos de
dialetologia que, naturalmente, tinham na Fonética uma ferramenta essencial.
Foi, então, que surgiram os alfabetos fonéticos como o IPA (da Associação
Internacional de Fonética). Na virada do século XIX para o século XX, o mundo
viu um enorme desenvolvimento científico, tecnológico e industrial. As
pesquisas com os sons da fala criaram laboratórios. Surgiram equipamento para
análise da fala, como o quimógrafo, o raio-X, o palatógrafo, etc. Três grandes
2
foneticistas se destacam naquela época: Abbé Pierre Rousselot, na França;
Structure, nos Estados Unidos e Daniel Jones, na Inglaterra. Dessa época em
diante, a Fonética seguiu por dois caminhos paralelos, não incompatíveis, mas
nem sempre amigáveis entre si. Um deles vinha de longa tradição e se dedicava
ao estudo dos mecanismos de produção dos sons da fala. Um grande foneticista
nessa linha tinha sido Henry Sweet, em Oxford. Daniel Jones, que foi seu aluno
e David Abercrombie, que foi aluno de Daniel Jones, continuaram essa tradição
com uma contribuição notável, procurando conciliar a fonética articulatória e
auditiva com a fonética de laboratório. Trabalhando em Edimburgo, M.A.K.
Halliday desenvolve modelos descritivos da prosódia, tema que viria a despertar
grande interesse na Fonologia. Nos Estados Unidos, Kenneth Lee Pike funda o
SIL (Summer Institute of Linguistics) e coloca a Fonética em estreita relação
com a Fonêmica e com outros níveis da gramática (tagmêmica). Na Alemanha, o
trabalho de Von Essen e, na França, os trabalhos de M. Grammond se
destacaram na história da Fonética. Todos esses foneticistas contribuíram de
maneira muito significativa para o desenvolvimento da Fonética. O outro
caminho da Fonética é o das pesquisas em laboratório. O sueco Gunnar Fant,
que tinha muitas ligações com Edimburgo, desenvolveu os fundamentos da
teoria acústica da fala e construiu protótipos de sintetizadores da fala, a partir
de idéias dos japoneses Chiba e Kayamma. A Fonética de laboratório teve
também outras preocupações que não eram apenas estudos acústicos. Surgiram
muitos estudos de anatomia, de fisiologia dos mecanismos de produção de fala,
investigações do mecanismo aerodinâmico, assim como estudos sobre a
percepção e audição. A história tem detalhes que não serão mencionados aqui. A
Fonética foi construída com o trabalho fundamental de muitos pesquisadores e
professores. Todavia, se eu tivesse que indicar quais pessoas contribuíram mais
na história da Fonética, criando um caminho bem traçado e enriquecendo a
Fonética com o que ela tem de melhor, diria que foram Henry Sweet e Gunnar
Fant. A Fonética de antes deles e de depois deles é muito diferente.
A pergunta acima levanta uma outra questão, que vou tratar a seguir. Trata-se
da relação entre Fonética e Fonologia. Na verdade, a Fonética sempre esteve
ligada aos estudos lingüísticos, como mostram as gramáticas antigas. Com F. de
Saussure, houve uma ruptura teórica, mas não prática. Tanto isso é verdade que
3
foi justamente dentro da abordagem estruturalista que a Fonética teve seu
desenvolvimento mais significativo. Logo após a metade do século XX, surgiram
as propriedades distintivas na fonologia, com os trabalhos de um lingüista (R.
Jakobson), de um engenheiro (G. Fant) e de um fonólogo (M. Halle), unindo as
características articulatórias, auditivas e acústicas dos sons. Essa foi uma ponte
importante entre a Fonética e a Fonologia. A partir de então, a Fonética passou
a se preocupar de modo mais estreito com outros níveis da análise lingüística.
As fonologias gerativas, como a Fonologia Prosódica, só tiveram um avanço,
porque as pesquisas fonéticas nessa área também avançaram muito. Com as
facilidades da investigação acústica da fala nos atuais computadores,
apareceram, recentemente, muitos estudos que se fecharam em procedimentos
estatísticos duvidosos, deixando de lado a relação estreita que os sons da fala
têm com a Fonologia e com a linguagem, em geral. São estudos sem valor
lingüístico, porque não procuram descrever a linguagem como os falantes a
entendem, mas as características sonoras da fala como a Física as entende.
ReVEL – Qual é a sua opinião sobre a Fonética não ser uma
disciplina independente nos cursos de graduação, tendo seu espaço
apenas nos cursos de Fonologia ou Lingüística Geral? Isso pode se
refletir no fato de que há poucos grupos de lingüistas dedicados aos
estudos fonéticos no Brasil?
Cagliari – Antes de mais nada, seria preciso discutir o conteúdo programático
do que deveria ser um Curso de Graduação em Letras. O que é e o que não é
relevante? Na minha opinião, os cursos de Letras são mal estruturados, de um
modo geral. Esquecendo um pouco essa questão, com relação ao ensino de
Fonética (e de Fonologia), uma disciplina de três horas semanais por semestre
seria suficiente para que um professor ensinasse os elementos teóricos básicos
de Fonética e de Fonologia, treinasse os alunos em algumas técnicas de fonética
de laboratório, desenvolvesse bom treino de produção e transcrição de sons da
fala, a partir das possibilidades articulatórias humanas, além de treiná-los na
descrição e análise fonológica. O que eu constato é que há um desequilíbrio nos
programas, com pouca ênfase nas áreas centrais da Lingüística (Fonética,
4
Fonologia, Morfologia, Sintaxe, Semântica, Pragmática, Análise do Discurso) e
um excesso de matérias de Educação (estágios, etc.) ou de línguas (Latim,
Grego, línguas modernas, literatura). Dentro da Lingüística, não raramente, há
um exagero nos estudos do discurso e do texto, com prejuízo de outras áreas
também essenciais. Por outro lado, não há professores universitários suficientes
para que todas as faculdades contem com pessoas devidamente preparadas. Nos
últimos anos, formamos muitos professores nas áreas do discurso e quase
ninguém nas áreas da Fonética e da Fonologia, nos cursos de pós-graduação.
Em que faculdades do Brasil, hoje, há pessoas devidamente habilitadas para
ensinar, por exemplo, a teoria das vogais cardeais, para fazer um rigoroso
treinamento de transcrição e de produção de sons da fala, para trabalhar com
fonética de laboratório dentro de uma visão lingüística do fenômeno? Essas são
habilidades essenciais a um professor lingüista, não apenas ao especialistas em
Fonética. E um professor que sai de um Curso de Letras tem que ser, antes de
tudo, um lingüista.
Respondendo à segunda parte da pergunta, parece óbvio que, se não formamos
pessoas interessadas na área, nos cursos de pós-graduação, não formamos
pesquisadores. Sem pesquisadores não surgem os grupos de pesquisa. Criamos,
assim, um círculo vicioso. Apesar dessa situação geral, constata-se que, em
determinados lugares, há pequenos grupos de pesquisadores levando adiante
trabalhos interessantes e relevantes de Fonética, neste país. Também se
constata que nossas faculdades não dispõem de recursos mínimos para o
desenvolvimento das atividades de uma matéria como a Fonética. Há uma
necessidade de equipamentos caros, que nunca são prioridade nos orçamentos
das faculdades nem dos órgãos financiadores de pesquisa. Há, ainda, os
pareceres negativos que os foneticistas costumam ganhar em seus projetos e
trabalhos, porque nossos pares (será?) acham que a Fonética é algo menor,
secundário ou até mesmo descartável. Todos esses fatores têm contribuído para
uma enorme diminuição na formação e na atuação de foneticistas entre nós.
Finalmente, os grupos que trabalham com línguas indígenas mantém uma
prática descritiva com suporte imprescindível da Fonética. Na medida em que o
interesse pela Fonética diminui, essas áreas de pesquisa e de trabalho também
começam a diminuir. Por outro lado, as línguas indígenas começam a despertar
5
interesses de outros níveis da Lingüística, como o discurso. Porém, se não há
descrições básicas da língua, não haverá dados para um estudo em outros níveis,
como o discurso.
ReVEL – Qual é o foco de pesquisas consideradas de ponta em
Fonética hoje?
Cagliari – Do ponto de vista dos estudos articulatórios e auditivos, o enfoque
mais atual está voltado para as pesquisas prosódicas: entoação, ritmo, etc. No
Brasil, há um trabalho, que vem de longa data, investigando a variação
lingüística no país. Porém, as pesquisas mais avançadas da área estão voltadas
para o reconhecimento automático da fala por máquinas. Dadas as enormes
dificuldades, as pesquisas avançam muito vagarosamente. Mas, já há resultados
interessantes. Essas pesquisas baseiam-se na busca de algoritmos tirados de
uma enorme quantidade de fala gravada e processada com o objetivo de obter
invariantes acústicas dentro do caos da variação da fala de uma língua. Esse tipo
de pesquisa só foi possível depois que os computadores chegaram à
configuração atual em termos de velocidade de processamento e de memória.
Enquanto os resultados mais desejados não chegam, algumas pesquisas
procuram resolver problemas mais localizados, por exemplo, tentando passar da
transcrição fonética (ou fonológica) para uma transcrição ortográfica. Esse tipo
de pesquisa não interessa muito aos engenheiros, porque a transcrição fonética
não é algo de que eles precisam, a não ser em situações muito específicas. Há
cerca de cinqüenta anos atrás, outras abordagens foram sugeridas, mas ficaram
descartadas porque, naquela época, não havia condições computacionais para
sua implementação. Hoje, ninguém se preocupa com elas, porém, poderiam
trazer alguma contribuição nova. Como ainda não chegamos a um ponto ideal
na produção de fala sintética, há alguns estudos nesse sentido. Um tipo de
pesquisa que tem tido destaque nos últimos anos é a produção de programas de
computador capazes de passar de uma escrita ortográfica para uma produção
de fala sintética. Um outro foco de pesquisa de ponta, hoje, é a investigação
neurolingüística. A Fonética tem uma participação especial nesse tipo de
pesquisa. Curiosamente, os dois focos mais destacados nos trabalhos atuais não
6
têm como objetivo imediato descrever características fonéticas das línguas, mas
contribuir para o avanço de outras áreas.
ReVEL – Que interfaces com outras subáreas da Lingüística a
Fonética apresenta hoje, além dos estudos que fazem a interface
Fonética x Fonologia?
Cagliari – Das respostas apresentadas acima, fica claro quais interfaces a
Fonética tem estabelecido com outras áreas, além da interface direta com a
Fonologia. A interface mais usada atualmente é, sem dúvida, a interface com a
engenharia de comunicação: telefonia, fala sintética, produção escrita a partir
da fala e reconhecimento automático da fala por máquinas. Uma outra interface
que tem apresentado grande interesse de ambas as partes é a que une a Fonética
aos estudos de neurolingüística, em particular, com a patologia da fala e a
fonoaudiologia. Numa dimensão bastante reduzida, a Fonética mantém
interface com outras áreas, em que os estudos dos sons da fala entram com
elementos importantes. Desse modo, a Fonética contribui para os estudos do
processo de alfabetização, da leitura e da formação e do uso dos sistemas de
escrita. Contribui também para o estudo específico de alguns aspectos da teoria
literária, como os estudos sobre poética, metrificação, estilística e até para
mostrar características textuais relacionadas, por exemplo, com as atitudes do
falante. Essas interfaces têm ajudado a Fonética a se interessar por aspectos da
linguagem oral que nem sempre tiveram um destaque e uma atenção especial.
Obviamente, a grande preocupação da Fonética é com o sistema da língua e,
nesse sentido, as pesquisas fonéticas, mesmo estando ligadas a áreas extralingüísticas,
passam por uma re-interpretação fonológica e de outras áreas da
Lingüística e não acabam fora dos estudos lingüísticos. Nesse sentido, a ação
dos engenheiros de sons não pode ser considerada uma atividade lingüística.
Não há um retorno devido, a partir do trabalho de engenharia para a descrição
lingüística das línguas. Os aparelhos enganam mais do que descrevem. Quem
interpreta é o ouvido e a mente humana tendo, no sistema da língua, seu
programa interpretativo, não nos programas das máquinas, pelo menos de
acordo com o estado atual das investigações.
7
ReVEL – Como uma autoridade na área da Fonética, o senhor
poderia sugerir alguns livros para que estudantes de Letras e
Lingüística pudessem se iniciar ou mesmo se aprofundar em seus
estudos de Fonética?
Cagliari – Um dos problemas que os professores dos cursos de Letras
encontram é devido ao fato de muitos alunos lerem apenas textos escritos em
português. Grande parte da produção científica e tecnológica atual de muitos
países vem através da língua inglesa. Sem saber inglês, fica difícil um aluno
poder se formar adequadamente. Como o mundo todo estuda inglês, não faz
muito sentido traduzir muitos tipos de textos escritos em inglês para todas as
línguas do mundo. Feita tal ressalva, vou apresentar, a seguir, uma bibliografia
básica para um Curso de Graduação em Letras. Outras escolhas seriam
perfeitamente válidas, uma vez que há muitas obras sobre o mesmo assunto.
Das obras apresentadas abaixo, as duas primeiras são as mais importantes e que
deveriam constar da biblioteca básica de todo professor de Letras.
1. Obras básicas:
ABERCROMBIE, David (1967) Elements of general phonetics. Edinburgh:
Edinburgh University Press.
LADEFOGED, Peter (1975) A course in phonetics. New York: Harcourt Brace
Jovanovich, Inc.
2. Obras complementares importantes:
CATFORD, J. C. (1988) A practical introduction to phonetics. Oxford:
Clarendon Press.
CATFORD, Jan C. (1977) Fundamental problems in phonetics. Edinburgh:
Edinburgh University Press.
FANT, Gunnar (1968) “Analysis and synthesis of speech process”. Manual of
phonetics, ed. Bertil Malmberg. Amsterdam: North-Holland Publishing Co., pp.
173-277.
8
FRY, D. B. (1979) The physics of speech. Cambridge: Cambridge University
Press.
LAVER, John (1994) Principles of phonetics. Cambridge: Cambridge University
Press.
3. Obras em Português:
FERREIRA NETO, Waldemar (2001) Introdução à Fonologia da Língua
Portuguesa. São Paulo: Hedra.
MASSINI-CAGLIARI, Gladis & CAGLIARI, Luiz Carlos (2001) Fonética. in:
Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras, MUSSALIM, Fernanda &
BENTES, Anna Christina (org.). São Paulo: Cortez. pág. 105-146.
SILVA, Thaïs C. (1998) Fonética e fonologia do português. São Paulo: Contexto.

A NASALIDADE DAS VOGAIS EM PORTUGUÊS

A nasalidade das vogais em português
José Mario Botelho (UERJ e ABRAFIL)

Introdução
Primeiramente se faz necessário distinguir fonética de fonologia e seus objetos de estudo e, conseqüentemente, seus objetivos. Embora tenham particularidades, apresentam pontos afins, já que se apóiam uma na outra quando precisamos fazer uma análise dos sons vocais elementares, a qual muitos denominam tão-somente análise fonética, em vez de análise fonético-fonológica.
Enquanto a fonética estuda os sons como entidades físico-articulatórias isoladas, a fonologia irá estudar os sons do ponto de vista funcional, como elementos que integram um sistema lingüístico determinado. (Callou; Leite, 1993: 11)
Assim, os sons da fala humana, que são objetos de estudo da fonética e da fonologia, recebem tratamentos distintos, em virtude dos respectivos objetivos: aquela se ocupa da descrição e análise das particularidades articulatórias, acústicas e perceptíveis dos fones (sons da fala humana), enquanto a outra procura estabelecer diferenças distintivas entre os fonemas (elementos mínimos distintivos que se depreendem dos sons da fala humana) e quais as combinações de um com os outros na formação de morfemas, palavras e frases. Portanto, o objeto de estudo da fonética é o som da fala humana ou o fone, e o da fonologia é o fonema, unidade mínima abstrata.
Logo, constituem disciplinas distintas, mas que “têm sido entendida como duas disciplinas interdependentes, uma vez que para qualquer estudo fonológico é indispensável partir do conteúdo fonético, articulatório e/ou acústico para determinar quais são as unidades distintivas de cada língua.” (Callou e Leite, ibidem, p. 11).
Por isso, a análise que será apresentada para as vogais ditas nasais terá elementos de uma e de outra, sem que para isso se faça uma separação em todos os momentos e se estabeleça uma distinção nítida entre os elementos da análise.
Segundo Câmara Jr. (1985), o português, dentre as línguas românicas, se caracteriza por uma emissão nasal das vogais, que se efetiva em muitos casos. Observa que o fenômeno da nasalidade das vogais se apresenta também no francês, mas sob diferentes condições fonológicas. Afirma que o que se pode observar nas demais línguas românicas a partir de uma descrição fonética é “uma leve nasalação de uma vogal em contato com uma consoante nasal da sílaba seguinte, no mesmo vocábulo” (p. 46).
De fato, a nasalidade se dá quando a corrente de ar, após passar pela glote e encontrar o véu palatino abaixado e a passagem nasofaríngea aberta, tem uma parte do ar desviado para a cavidade nasal, criando os sons nasais ou os nasalizados.
Na prática, os sons nasais distinguem-se dos sons nasalizados.
Os fonemas nasais do português são: /m/, /n/ e /ñ/ (que se verificam, respectivamente, em: “mato, nora e unha”), pois nesses sons se verifica um prévio fechamento total na cavidade bucal, além do abaixamento do véu palatino. Ou seja, só consoantes podem ser nasais, como ocorre com o /m/, em que a obstrução é obtida pela aproximação dos lábios; com o /n/, em que a obstrução é obtida pela junção da ponta da língua com a parte posterior dos dentes superiores; e com o /ñ/, em que a obstrução se dá com a parte anterior da língua encostada no palato duro.
Quando não há obstrução total do ar na cavidade bucal, mas há a ressonância nasal, o som é nasalizado, como é o caso das “vogais nasais” (assim consideradas pelas gramáticas normativas e compêndios gramaticais).
Daí, Câmara Jr. ter defendido a tese de que não há vogal nasal em português, mas vogais nasalizadas, uma vez que a vogal é sempre um som bucal, cuja emissão da corrente de ar se faz livremente, ao contrário do que ocorre com a emissão da corrente de ar na produção de uma consoante, que se caracteriza como um obstáculo.
Tal nasalização da vogal pode ser fonética ou fonológica. Naquela, a vogal (que é sempre oral) recebe uma leve nasalação por conta do contato com uma consoante nasal da sílaba seguinte (ex.: “mamãe”, “cana”, “aranha”); na nasalização fonológica, a nasalação (que não é nada leve) da vogal se dá por conta do contato com um elemento nasal (arquifonema /N/) no declive da sílaba (ex.: “tampa”, “minto”, “mundo”). Certamente, não constituem fenômenos equivalentes, porquanto o resultado da nasalização fonológica é uma forma distinta daquela em que a vogal tem prolação oral, diferente do que ocorre com as formas em que se verifica a nasalização fonética.
O próprio Câmara Jr. (Ibidem, p. 46-7), ressaltando a importância da distinção dos dois casos de nasalização da vogal em português, dá subsídios para se acreditar na existência de vogais nasais na língua portuguesa. Chega, inclusive, a aceitar tal classificação, embora prefira descrever o fenômeno como sendo um grupo de dois fonemas, em que se combinam a vogal oral abafada e o elemento nasal:
Diante de uma possível nasalação, que é meramente mecânica e fonética (sem efeito para distinguir formas da língua) e uma nasalação que se opõe distintivamente à não-nasalação, é preciso encontrar um traço específico que caracterize as vogais que são nasais em termos fonêmicos. São elas as únicas vogais nasais portuguesas que merecem tal classificação. (Câmara Jr., 1985: 47)

As Vogais Nasais
É polêmico o assunto acerca da existência ou não de vogais nasais em português, apesar de ser uma característica da língua a emissão nasal para as vogais. Esta característica, que também se verifica no francês, porém, como já foi observado, em condições fonológicas diferentes, distingue o português das demais línguas românicas, cuja nasalação da vogal se dá quando em contato com uma consoante nasal da sílaba imediatamente posterior, no mesmo vocábulo.
Na língua portuguesa, verifica-se também este fenômeno ao par da emissão nasal da vogal sem o apoio do contato com a consoante nasal seguinte. Porém, não há equivalência entre os dois fenômenos, já que um, a emissão nasal da vogal sem o contato com uma consoante nasal da sílaba seguinte distingue formas (“tampa/tapa”, “minto/mito”), enquanto o outro não distingue (“tema” – com a prolação nasal ou oral do [ê], não há alteração de significado). Entretanto, referente a este último caso, é mister lembrar que em Portugal, a prolação oral da vogal [á] em flexões verbais do tipo “cantamos” distingue o Pretérito Perfeito do Indicativo do Presente do Indicativo. E isto constitui uma estranheza, principalmente, para os brasileiros, já que a vogal neste contexto fonológico soa ligeiramente fechada (abafada) aqui, o que não ocorre alhures.
Os nossos gramáticos evitam tratar deste assunto; porém, alguns fazem observações, colocando-se contrários à existência de vogais nasais na língua portuguesa, enquanto outros arrolam-nas em suas Gramáticas, porém sem uma descrição convincente delas, como é o caso de Bechara (1999), Rocha Lima (1998), Cunha e Cintra (1985) e Ribeiro (2005). Todos classificam-nas vogais nasais no item “quanto à cavidade bucal ou nasal”, seguindo a orientação da NGB acerca da classificação das vogais.
Câmara Jr. (1977, 1985 e 1991) decididamente reconhece a vogal nasal em português e a descreve como sendo “um grupo de dois fonemas que se combinam na sílaba: vogal abafada e elemento nasal”. Para ele a vogal nasal é a combinação de uma das vogais abafadas (fechadas ou semi-fechadas) e uma consoante nasal reduzida, homorgânica com a consoante imediatamente posterior da outra sílaba (campo – /kaNpu/ e não, /kãpu/). Ou seja, para aquele autor não existe vogal nasal pura, pois “a vogal nasal só se impõe numa língua em que haja contraste distintivo entre vogal nasal e vogal mais consoante nasal” (Câmara Jr., 1977), como em francês, em que se verifica /bõ/ para “bon” e /boN/ para “bonne”. Certamente, Câmara Jr. não atentou para a existência dos nomes próprios “Nilsonmar”, “Annelise” e “Polímnia”, em que não há a opção de se pronunciar as vogais destacadas se não evidenciando o seu caráter nasal, à semelhança do que ocorre naquela forma do francês, citada por ele, e em muitas outras como: “omnia”, “annonce” e “innocent”.
Para chegar a esta conclusão, o autor reserva três páginas do item IV – “A Estrutura da Sílaba”, do seu Problemas de Lingüística Descritiva, com uma explanação bem consistente e, até certo ponto, convincente. Não obstante, não trata das vogais nasais que se representam na escrita com um til (~), como: fã, Maracanã, cãibra, irmãzinha, etc., nem do caso da palavra “muito”, que, embora seja o único caso, é uma realização de um fonema vocálico nasal, em português, sem qualquer representação física que o caracterize.
Convém lembrar, também, que há um conceito (bem difundido e aceito por muitos estudiosos) de fonema que se fundamenta num pequeno número de propriedades acústicas e articulatórias, também denominados traços distintivos.
Cada conjunto de determinados traços distintivos, que se opõem entre si, constituem os distintos fonemas de uma língua e cada fonema distingue suas formas, que se opõem entre si por possuí-los, em face de uma outra forma, que não o possui (ex.: “fala/ala”, “carta/cata”, “mala/mal”), ou que apresenta um outro fonema em seu lugar (ex.: “fala/faca/vaca”, “porto/perto/peito”).
Como se pode observar, os fonemas ou conjunto de traços distintivos concorrem na constituição das formas de uma dada língua. Jakobson, já em 1962, fizera tal observação ao definir fonemas como “propriedades fônicas concorrentes, que se usam numa dada língua para distinguir vocábulos de significação diferente” (Jakobson apud Câmara Jr., 1985: 24).
Considerando tal concepção, a qual o próprio Câmara Jr. (Op. cit.) adotou e a concepção de que grafema não se confunde com fonema, uma vez que um mesmo fonema pode ser grafado de diferentes maneiras, poder-se-ia analisar aquela nasalização fonológica das vogais como verdadeiras vogais nasais.
Assim como na oposição “vala/vela” se pode observar que a nova significação se deu por conta da substituição do fonema /a/ pelo fonema /é/, da primeira sílaba, também se observa que ocorre uma nova significação na oposição “mato/manto” em virtude da substituição de um fonema oral por um nasal, cuja representação gráfica se faz com duas letras. Não teria uma descrição semelhante a oposição estabelecida entre “pato” e “passo”, ou “mofo” e “morro”, em que os fonemas /S/ e /R/, que formam as novas significações respectivamente, foram representados por duas letras? Logo, não seria argumento para se negar a existência da vogal nasal o fato de ela ser representada na escrita com um “m” ou um “n” num suposto declive da sílaba, criando o que alguns foneticistas denominam travamento nasal à semelhança do que ocorre em “amor”, em que se verifica um travamento causado pelo /R/ na posição decrescente da sílaba “-mor”.
O que se tem no caso de “samba”, “minto”, “onda” e tantas outras é um fonema representado por dois grafemas e não exatamente um travamento como ocorre em formas do tipo “carta”, “esta” e outras.
Não se pode esquecer, ainda, de que há casos em que a vogal nasal é representada com uma notação léxica (~) (“lã”, “cãibra”, irmãzinha”) e há um caso em que tal nasalidade não se representa graficamente (“muito” – “/muyNtu/”). No primeiro caso, há quem se valha de uma forma teórica em /aN/ – teoria desenvolvida pelo próprio Câmara Jr. –, cujo elemento nasal se pode resgatar em formas cognatas, como se verifica nos pares “órfã – orfanato”, “cidadã – cidadania”, “irmã – irmandade”. Contudo, esse procedimento é questionável, uma vez que nem todos os casos de vogais nasais têm em sua descrição diacrônica um mesmo caráter etimológico.
Callou e Leite (Op. cit., p. 85-90) apresenta um corpus, em que figuram pares em cujas seqüências fônicas se opõem os fonemas vocálicos orais e nasais (ou nasalizados) e aventam a possibilidade de ser aquela oposição o fato de uma conter uma vogal oral e a outra uma vogal nasal ou o fato de em apenas uma do par ocorrer um elemento consonântico nasal. Passam a discutir cada caso, considerando as idéias de Câmara Jr., que, como já observamos, aponta para a segunda alternativa como solução do problema.
Lembram que os estruturalistas concretistas apontaram para a existência das cinco vogais nasais, independentemente do elemento consonântico nasal que pode ou não ocorrer, condicionado pela nasalidade da vogal, cujas diferentes realizações fonéticas dependem da consoante subseqüente. Lembram também que Cunha (1986) descreve como dígrafo e não como encontro consonantal o que ocorre em palavras como “lindo” e “pombo”, sendo o grafema “n” ou “m” indicadores de nasalidade da vogal precedente, equivalente a um til (~) como em “lã”. Depois, ressalta a solução econômica dada pelos gerativistas de que seriam tão-somente realizações fonéticas geradas por regras a partir de uma vogal oral seguida de uma consoante nasal. Apreciam tais regras apresentadas por Perini (1971), comparam-nas sutilmente com outras também gerativas em que as vogais nasais são consideradas fonêmicas, apresentadas por Leite (1974) e concluem sem um posicionamento definido acerca de existirem ou não vogais nasais, asseverando que “nenhuma das propostas até agora apresentadas dá conta integralmente de fatos comuns em falantes do português” (p. 90).
Battisti e Vieira (1999) apresentam uma sintética leitura da proposta de Câmara Jr., seguida de referências a outras propostas.
Sobre a leitura da proposta de Câmara Jr., assim como o faz Callou e Leite, as autoras apresentam os dois tipos de nasalização da vogal (nasalidade fonética e nasalidade fonológica) e a argumentação daquele autor na tentativa de comprovação de ser a vogal nasal (nasalidade fonológica) uma vogal seguida de uma consoante nasal na mesma sílaba e que a referida nasalidade é conseqüência do travamento da sílaba por uma consoante nasal pós-vocálica.
Em seguida, apresentam uma síntese das propostas de Lopez (1979), de Wetzels (1988 e 1997) e de Moraes e Wetzels (1992), observando a semelhança entre suas abordagens com a de Câmara Jr. Por fim, afirmam que a vogal nasal “é uma unanimemente entendida, na subjacência, como uma seqüência de dois segmentos: VN” (p. 167), mas não se posicionam claramente, embora, nesse mesmo parágrafo final, asseverem:
A vogal nasalizada pura é sempre uma manifestação apenas de superfície. Por conseguinte, o sistema fonológico do português não fica alterado, pela presença da nasalidade vocálica, quanto ao número de segmentos que o compõem: sete são as vogais. (Battisti; Vieira, in: Bisol, 1999: 167)
o que faz parecer que Battisti e Vieira não só não consideram fonemas as manifestações vocálicas nasais como também as orais átonas, já que o “sistema vocálico” do português comporta apenas sete vogais – as quatro fechadas e as três abertas, que ocorrem nas sílabas tônicas.
Silva (1999) apresenta as vogais nasais sem fazer qualquer alusão ao questionamento de serem elas vogais verdadeiramente nasais ou nasalizada. Descreve o fenômeno apresentando o quadro das cinco vogais, sem fazer, inclusive, distinção entre as que ocorrem em sílaba tônica ou em átonas. Denomina tais casos de nasalização, por ocorrerem obrigatoriamente em qualquer dialeto do português, e os distingue dos casos em que ocorre nasalidade – fenômeno marcado por uma variação dialetal, sem causar diferença de significado. Logo, para a autora, quando a não-articulação da vogal nasal causa diferença de significado (ex.: “lã/lá”, “cinto/cito”, “tampa/tapa”), tem-se a nasalização; quando a não-articulação marca a variação dialetal e não causa diferença de significado, tem-se a nasalidade (ex.: “m[ã]mão ou m[a]mão”, “j[ã]nela ou j[a]nela”).

Considerações finais
Concebendo ou não uma consoante nasal reduzida – um arquifonema nasal /N/ –, que se realiza com “m” em formas do tipo: “campo, membro, limpo, ombro, rumba”, ou com “n” em formas do tipo: “canto, mente, lindo, honra, junta”, para representar fisicamente o fenômeno da nasalização, ou o til como um outro tipo de representante físico de tal fenômeno, o que não se pode negar é a existência de realizações nasais para as vogais em português.
Assumimos que tais realizações nasais constituem verdadeiros fonemas nasais, que se justificam não só pelo fato de se distinguirem das realizações orais em virtude de suas propriedades, mas sobretudo com o conceito de fonema, apresentado por Jakobson (Op. cit.), uma vez que a simples substituição de um segmento fônico oral por um outro nasalizado resulta uma nova forma com um novo significado. E não importa se tal segmento fônico nasal é composto de uma vogal e um elemento consonântico nasal ou uma vogal com um til, visto que um fonema pode ser representado com um ou mais de um grafema, como é o caso dos denominados dígrafos.
Logo, se um fonema se caracteriza por ser um som da fala humana que depende de suas oposições paradigmáticas (ou seja, a sua presença ou a sua ausência resulta em mudança de significação: “fala/faca/vaca/vala”, “pá/pé/pó”, “mal/má”, “plano/pano/pau”, etc.) e de suas combinações sintagmáticas: “amor/Roma/ramo/mora”, etc., as realizações vocálicas nasais são fonemas, fonemas vocálicos nasais, porquanto se comportam da mesma maneira que os que compõem as seqüências acima e se enquadram perfeitamente nelas: “vaca/vá/vã”, “pau/pão”, “canto/cato/cão”, etc.
Portanto, somos da opinião que além dos sete fonemas vocálicos orais (abertos e fechados) tônicos e dos cinco orais átonos, a língua portuguesa apresenta cinco fonemas vocálicos nasais, cujas diferentes realizações tônicas ou átonos não devem ser valorizadas por serem de natureza fonética e não fonêmica. Tais fonemas vocálicos nasais (ou vogais nasais) podem ser representados fisicamente ou com um til (~) que lhe vai acima ou seguida de uma consoante homônima às consoantes nasais (“m” ou “n”), homorgânica à consoante da sílaba subseqüente. Há ainda o único caso em português em que não há qualquer representante físico do fenômeno da nasalidade da vogal (“muito” – “/muyNtu/”).
Certamente, não pretendemos esgotar o assunto neste trabalho, por questões óbvias. No entanto, esperamos ter apresentado subsídios para uma reflexão acerca do polêmico tema.

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